sábado, 25 de novembro de 2006

Da Língua Portuguesa (2)


"Ein jeder, weil er spricht, glaubt, auch über die Sprache sprechen zu können."

Qualquer um, porque fala, julga que também sabe falar sobre a língua.

Johann Wolfgang von Goethe

Da estultícia nacional revelando‑se em torno de uma TLEBS…

Quando há já algum tempo escolhi esta reflexão de Goethe para epígrafe desta rubrica, longe estava eu de imaginar que ela se aplicaria tão certeiramente a mais uma pseudopolémica que rebentou na casa portuguesa. E desta vez, ninguém se retraiu de se atirar ao assunto como gato a bofe. Nem mesmo aqueles que em regra optam pelo perfil discreto por falsa modéstia.

Nunca me dei conta de que alguém "com tempo de antena reservado" ou espaço cativo na imprensa escrita se pusesse a vociferar contra uma qualquer actualização de uma nomenclatura ou terminologia científica. Todos sabemos que elas têm mudado. E quanto. Da História à Biologia, passando pela Geografia, Física e Química, para referir apenas algumas áreas mais comuns do saber.

E aqui está o cerne da questão: as áreas são comuns, vulgares, conhecidas de todos; os saberes que as integram, não. Onde está então o texto de protesto, o abaixo‑assinado, o inflamado artigo de opinião, o comentário despropositado e estulto contra o "horror de agora as criancinhas e os jovens terem de passar a saber o que é o ácido desoxirribonucleico e o ácido ribonucleico, demoníacos palavrões cunhados por mente tarada"? Ou sobre a chatice de se ter de saber o que é uma hipotenusa e um cateto? Ou essa coisa das mitocôndrias? Ou os ecossistemas? Não, pois não?

Ao invés, quando se trata da Língua Portuguesa e áreas afins, todo e qualquer bicho careta analfabeto se julga com o direito inalienável – porque aqui nasceu e aprendeu a falar – de expender as mais descabidas e abjectas considerações e opiniões. Porque sim. Até humoristas de muito duvidoso talento se acham no direito de opinar sobre o que, obviamente, não fazem a mínima ideia do que possa tratar‑se. Não é de todo admissível que, a coberto de se ser humorista, se falte ostensivamente ao respeito – o já omnipresente problema do Portugal democrático – a profissionais, quando olimpicamente se ignora o assunto sobre o qual, todavia, se teima em opinar. E assim é publicada uma coisa intitulada "Metam os epicenos no advérbio disjunto"…

Ser Maria‑vai‑com‑as‑outras é um hábito muito português. Se alguém ocupando uma posição de destaque sai à liça para a useira e vezeira maledicência, logo dois ou três lhe seguem os passos. É tentação bem mais forte do que parar para reflectir, pedir conselho, sondar opiniões, recolher informação, documentar-se, ler, enfim, ser intelectualmente honesto. Pois, é verdade… Neste nosso País, são atitudes e comportamentos muito pouco comuns… Muito pouco epicenos…

De repente, todos conhecem o conteúdo da Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário (TLEBS)! E todos "sabem" que ela não presta! E todos se amofinam muito, apenas porque aquilo que aprenderam in illo tempore de acordo com a Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 já não é o que era. E uma corja de velhos do Restelo levanta‑se das tumbas.

A Linguística Geral surge na Europa em 1916, com o Cours de Linguistique Générale, de Ferdinand de Saussure, mas é só depois da II Guerra Mundial que a investigação pura e dura se desenvolve, quase em simultâneo, na Europa e nos Estados Unidos. Em Portugal, são os trabalhos pioneiros do Prof. Luís Filipe Lindley Cintra que lançam as bases da Linguística Portuguesa, num esforço para se emancipar da tradição filológica. É pois muito natural que uma nomenclatura gramatical herdada de duas línguas mortas – o Grego clássico e o Latim –, com características estruturais bem diferentes das reveladas hoje pelas línguas ocidentais entre as quais se conta o Português, se revele obsoleta e desadequada à descrição cabal dos fenómenos e estruturas dos idiomas modernos.

Qual é então a razão de tanto espanto e de tanto torcer de narizes àquilo que todos nós deveríamos – e devemos – esperar e exigir da actividade científica? Que investigue, que estude, que descreva e que explique. "Na Natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma." E, no entanto, a lei de Lavoisier tal como inicialmente foi proposta não se verifica. Será que os nossos velhos do Restelo marchariam de bom grado sobre França para redecapitarem o malogrado cientista?

A primeira razão de tudo isto é simples: a ignorância. A segunda: a presunção. A terceira: o imobilismo atávico. Que mal virá às crianças portuguesas se aprenderem o que é um conector e um quantificador? Julgamo-las assim tão ignorantes e desinteressadas que não compreendam o que significa o verbo "ligar" ou o substantivo "quantidade"? Ou já virão do berço a saber o que é uma multiplicação? Ignorantes e desinteressados são os adultos, que nesta pseudopolémica deram, mais uma vez, provas de não quererem evoluir. Aliás, não foi a OCDE que revelou que 60% dos portugueses activos consideram desnecessária a formação contínua por acharem que já sabem tudo o que têm de saber para o seu desempenho profissional?

Toda a obra humana é mutável. E ainda bem, porque, se assim não fosse, seríamos todos ainda hoje pré‑históricos trogloditas (aqui, no sentido denotativo do lexema). É porque temos questionado os saberes adquiridos que estamos hoje onde estamos. Para o bem e para o mal.

RIC

12 comentários:

André disse...

Eu confesso que esta nova terminologia me incomoda um bocadinho. Eu não a conheço, a não ser algumas palavras soltas que vou ouvindo por aí, mas já me sinto um tanto nostálgico em relação àquilo que se pretende deixar para trás. E nomes tão reconhecidos como Vasco Graça Moura e Prado Coelho saberão a sua gramática, sendo que também eles se opõem a esta nova terminologia.
Já com a terminologia usada por Lindley Cintra na "Nova Gramática do Português Contemporâneo", que já não é assim tão nova como isso, eu sinto-me mais confortável (talvez porque a conheça...). A meu ver a terminologia gramatical também faz parte do nosso património cultural, será que ela está num estado assim tão lastimável que exija semelhante reestruturação. Eu não sei.
Tenho que admitir que a princípio, qual "maria vai com as outras", também eu andei a destilar veneno. O facto é que, como tu dizes, e com razão, não tenho competência para me pronunciar sobre o assunto, mas mesmo assim acho que deveria haver um maior consenso entre as pessoas de letras em torno de uma matéria tão importante como esta.

leone disse...

I wish I could speak your language because it seems so romantic!!

RIC disse...

Olá André!
Uma terminologia é um conjunto de etiquetas, nada mais do que isso. Não se trata - como já ouvi ignorantes dizerem - de «modificar» a gramática do Português. Qualquer saber científico resulta de investigação e da aplicação de modelos descritivos e explicativos. E esta é, quanto a mim, a pedra de toque.
Acresce o facto de tal terminologia se destinar aos docentes e não à «re-etiquetação» da gramática existente. É um instrumento de trabalho.
Quanto ao Prado Coelho e ao Graça Moura fizeram figura triste. Só o EPC é que tem formação na área, mas como na Faculdade de Letras continuam as velhas quezílias entre os das Literaturas e os da Linguística, não há nada a fazer.
O que me irrita seriamente é que ninguém mete o nariz nas questões das ciências exactas, mas tratando-se da língua toda a gente sabe tudo... Vai-se a ver e ercrevem-na e falam-na pior que muitos analfabetos! É impressionante!
Uma coisa é uma pessoa sentir-se insegura ou nostálgica. Compreendo. Outra, muito diferente, é descarregar as armas à toa, porque no fundo não sabe do que se trata.
Como em tudo, é a honestidade dos intervenientes que deve pontuar. Se assim não for, ora bolas para as polémicas.
Desculpa-me, André, mas uma nomenclatura nunca foi, não é, nem nunca será um património cultural. Muito menos nosso! Se for de alguém, é de defuntos: gregos e romanos.
E, para terminar, qualquer saber requer actualização. Ou Einstein limitou-se a repetir Newton?
Um abraço! E obrigado!
Um bom fim-de-semana para ti!

RIC disse...

Leone!!! I cannot believe it!!! Man, where on earth have you been hiding? I'm so happy to hear from you again! Are you back «in business»?
Curiously enough, other people who don't speak Portuguese feel and say exactly the same. Maybe that's a good reason for learning it... We're now a community of more than 200 million people...
Oh what a wonderful surprise! I hope you'll be around more often now and wish I can read your posts again really soon.
Thank you so very much!
You just made my day a lot brighter with your visit!

Jack disse...

Aaaaaaaaaa Hi!?

RIC disse...

Hello Joel! I guess that long «aaa» means something like the British «er» in long version, too. So it means you didn't get a thing... And I've posted on linguistics, grammar, and some bad habits around here...
Hi to you too, dear friend!
Thanks for the silent visit!

Minge disse...

Your language is delicious, Ric. Will you teach me some day?

RIC disse...

Hello Minge! Thank you very much for your delightful compliment!
I most certainly will! Your wish is my command! Just say when!
Have a great Sunday!

Anónimo disse...

Oi, Ric.
Eu confesso que fiquei meio confuso com a situação que você descreveu aí. Mas concordo com você: terminologia é só etiqueta.
Basta ver as palavras que têm até 2 ou 3 sufixos diferentes. E significam a mesma coisa.
Bom, um abraço!

kevin disse...

I agree with the post above that Portuguese sounds so romantic....come and speak Portuguese to me RIC! :)

I am still so impressed when i read your comments on your post how you respond in different languages. I am so impressed. You must be an intelligent man.

Now i am curious. Cuantos anos tienes? (espanol)

Wishing you a great day.
Kevin in New Zealand.

RIC disse...

Olá Carioca! É natural que te tenha escapado a questão aqui em discussão. A terminologia agora proposta é gramatical, ou seja, certas categorias da gramática dita tradicional, como por exemplo a classificação morfológica das palavras, passam a ser organizadas de outro modo e com outros nomes, de acordo com e em consequência da investigação linguística que tem sido feita ao longo dos últimos decénios.
Por exemplo, «manteiga» e «água», apesar de terem plural, são classificados como não contáveis, ao contrário de «cadeira» ou «copo», que são contáveis.
Espero que com estes exemplos já entendas melhor o sentido deste meu texto.
Um bom Domingo!
Uma abraço!

RIC disse...

Hello dear Kevin in NZ! Well, as you can see, you're not alone when you say Portuguese sounds romantic... I wish I had the distance needed to have an opinion about my own language. I do like it very much, I like my own accent (from Lisbon), I love the Brazilian way of speaking Portuguese, but I cannot react to it as I react to Italian, French, English or German. For instance, I find the English RP (also called Queen's English) very beautiful, very classical, very elegant, whereas I find the Texan accent unbearable,,, (Oops, I hope nobody takes these words of mine too serious... Specially people from Texas...)
And how can I speak Portuguese to you? The only way I see is by posting in Portuguese... Generally speaking, if you know Spanish and the main rules that make the differences between it and written Portuguese, you'll be able to read it easily.
Thank you very much for your compliment, but I don't think I'm beyond the average. On the contrary, as far as practical, daily things are concerned, I can be rather stupid and fool... Every coin has two sides...
Quieres saberlo mismo?... Let's say I was in this world already when the Beatles came together as a band in Hamburg, Germany... So in a few years I'll become half a century old.
I wish you a fabulous Sunday, too!
Thanks a lot!