É muito antiga a tradição satírica da literatura portuguesa: ela remonta aos cancioneiros medievais, coevos da fundação da nacionalidade, com deliciosas cantigas, umas de escárnio e outras de maldizer.
O século XVIII não descurou esta tradição, e além de Bocage – vulto maior do nosso Pré‑romantismo, popularizado por tantas anedotas que afinal não são da sua autoria –, outros se celebrizaram pelos seus dotes satíricos, ao lançarem um olhar crítico e demolidor sobre hábitos da sociedade portuguesa setecentista.
Há alguns dias, ao ler uma citação de Correia Garção, lembrei‑me de outras figuras das letras portuguesas daqueles tempos, entre as quais está o grande Nicolau Tolentino de Almeida (Lisboa, 10.IX.1740 - 23.VI.1811) e a sua deliciosa poesia satírica. Além de "Deitando um cavalo à margem", o "soneto do colchão" é uma pérola que ninguém pode desconhecer. É já um claro sinal de uma certa modernidade literária que viria a desabrochar, mais tarde, com os românticos.
Leiam, riam e, aqueles que têm jeito para poetar, imitem.
Não há mal nenhum nisso; mal haverá se esta tradição não for cultivada.
O Colchão dentro do Toucado
Chaves na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa a mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena,
A filha o ponha ali, ou a criada.
A filha, moça esbelta e aperaltada,
Lhe diz co'a doce voz que o ar serena:
– Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena;
Olhe não fique a casa arruinada…
– Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos? E, dizendo isto,
Arremete-lhe à cara e ao penteado;
Eis senão quando – caso nunca visto! –
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado.
domingo, 26 de novembro de 2006
O riso e a inteligência...
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6 comentários:
Esta pura "maldicência", não sei porquê fez-me recordar um livro magnífico, que a Natália, de boa memória, compilou :"Antologia da poesia portuguesa erótica e satírica", É que nele está incluído um poema (pasme-se!) de Augusto Gil, a que o outor, possìvelmente envergonhado, chamou "O peido"...
Olá João! Tens toda a razão! E, de algum modo, adivinhaste as minhas intenções: vou muito em breve postar sobre a grande Natália, que a «turba coribântica» já teria esquecido, não fosse o trabalho dedicado de outra grande - esta ainda viva e muito! -, Helena Roseta!
Essa antologia é o máximo! Que trabalho maravilhoso e excelente o dela! De facto, o meu vizinho a dar um título desses a um poema... Estaria muito solto...
Ainda hoje me lembro da primeira vez em que li este soneto de Tolentino: deu-me uma tal vontade de rir (o que em mim ainda hoje é comum...) que a professora ficou com a aula estragada... Andava eu no 4.º ano. E, é claro, nunca mais o esqueci. Depois do 25 de Abril e durante alguns anos soube-o de cor.
Mas há mais!... Olá se há!
Obrigado!
Um bom resto de Domingo!
I know that woman/painting. Who is it?
Hello Minge! Sorry, but I cannot help you. I just picked up a picture to illustrate female hair fashion in the 18.th century.
Hi RIC,
I hope you are having a great day over there in Europe. Now you asked about a clearer meaning of the verb "to psyche oneself up" Well it is definitely a delicious verb. I guess its more literal translation would mean 'to prepare oneself mentally' for a challenge or event. Do you have an equivalent in Portuguese?
Bringing you smiles,
Kevin in NZ
Hello dear Kevin! The more I read you, the more you strike me as a most gentle young man!
As to the verb, we do have «preparar-se mentalmente», which means exactly the same as in English, but we don't have anything based on the Greek noun «psykhe». Yet... (Lol!)
The day here in Portugal will be a sad one... We've just lost one of our greatest 20.th century poets this dawn... A painter as well... A man of the arts. Another one who set off to paradise...
Thank you very much!
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