quarta-feira, 4 de julho de 2007

En revenant à Lisbonne…

Escrevemos porque ninguém nos ouve.
Georges Perros


Prometi a mim mesmo, sem que disso possas ter a mais leve suspeita, que te enviaria pelo correio, antes de embarcar para Lisboa, o relato possível destes dias nuns quantos apontamentos. Chegou a hora de cumprir a promessa. Tudo o que aconteceu aqui está nestas folhas. Desta vez não hei-de precisar de confiar na memória, que não é nada fiável e se obstina em pregar partidas súbitas, com consequências quase sempre desastrosas. Nunca pensei que viesse a escrever o que escrevi em pouco mais de uma semana, e agrada-me tê-lo feito. Consegui um diário de viagem quase exaustivo, em tempo mais ou menos real, como é agora hábito dizer-se. Como se acaso o tempo vivido pudesse não ser real. Posso antecipar pelo menos uma reacção tua, ao lançares um primeiro olhar, suspeitoso e faiscante, a este maço de folhas. Sei também que, se te perguntasse se acertara, darias uma gargalhada escarninha, olhar-me-ias nos olhos em silêncio, afectarias depois indiferença e por fim atirar-me-ias em cara com desdém o nome que me tens chamado noutras ocasiões. Presunçoso. Ainda assim, arrisco.

Acharás por certo idiota e piroso que tenha escolhido, para início de cada dia, frasezinhas ridículas, como lhes chamarás com desprezo, sinais aparentes e enganosos de cultura, já que disso haverá aos montes em pacotes de açúcar e sacos de pão. Que sei muito bem que te estás nas tintas para estas minhas letraduras, que não fazes a mínima ideia de quem possam ser todos estes franceses, iguais a tantos outros insuportáveis que tiveste de aturar, excepção feita a Picasso, Vieira da Silva e outros pintores, evidentemente, porque lhes conheces as obras e os admiras. Nunca quiseste partilhar esse conhecimento por razões muito tuas que ainda agora não compreendo. Que continuo com a mania de querer afogar-te em tretas culturais, que julgo ter um ascendente sobre ti, que te fartaste de levar com o meu pretensiosismo, enfim, que para esse peditório já deste, e assim sucessivamente, como é teu hábito rematar conversas com lugares-comuns, que achas estarem na moda apenas porque uns quantos imbecis à tua volta os repetem até à exaustão. Que desde que nos conhecemos não tenho feito outra coisa senão amesquinhar-te, o que é visível até nas notas que escrevi à margem destas folhas. Que são insultuosas, porque só pretendem expor a tua ignorância. Que estou sempre armado em mentor. Eu, sabendo disto e correndo o risco de mais uma acusação demolidora, mesmo assim preferi mantê-las, convicto de que te auxiliarão. Não têm outra intenção. Tento defender-me das tuas acusações por todos os meios, continuo a não as aceitar e a negá-las com todas as forças das minhas convicções, mas sei que voltarás a proferi-las. Todavia, lá bem no fundo, não acreditarás muito nelas, ainda que não o consigas confessar, apesar de bem saberes que as minhas intenções sempre foram sinceras. «De boas intenções está o inferno cheio», dirás mais uma vez. Mas, como acaba sempre por acontecer a tudo neste mundo de absolutas imperfeições, a usura do tempo parece estar a levar a melhor. É este o meu único e verdadeiro receio.


Sentado a esta diminuta mesa no terminal do aeroporto, vou escrevendo as últimas palavras antes de fechar o envelope endereçado e selado que está em cima da mesa, junto à minha mão esquerda. Em volta, é intenso o movimento. Terminadas as festas, parecem todos ansiosos por regressar depressa à acanhada dimensão dos respectivos quotidianos, julgando-se a salvo do que possa afastá-los das monótonas rotinas que são os seus portos de abrigo. Descolam aviões, uns atrás dos outros, para todos os cantos do mundo e, mais uma vez, sinto-me voltar à infância, e a imaginação arrasta-me num vendaval de imagens, umas verdadeiras, outras… Ia escrever falsas mas, se são imaginadas, não serão nem verdadeiras nem falsas. Estou a sonhar acordado e sinto-me muito bem assim, neste estado de puro devaneio entorpecido. É um raro momento de felicidade, ou melhor, é um raríssimo instante feliz. A felicidade não passa de uma abstracção metafísica, muito conveniente mas pouco convincente, que, neste mundo materialão e hiperfísico, é de significado cada vez mais incompreensível e de sentido cada vez menos decifrável. Nem parece ser já sequer o reduto de uma qualquer utopia, das poucas que ainda sobrevivam e não queiram deixá-la morrer.

Enquanto me preparava para percorrer a distância que me separava do marco de correio e da sala de embarque, uma deliciosa canção de Barbara soou de repente, suave e quase em surdina, vinda de uma das lojas do terminal como uma carta, um bilhete de despedida ou um poema que se escreve ou se copia para dedicar com ternura a quem se ama. Há quanto tempo não escutava aquelas palavras afagadas por aquela sedutora melodia. É doloroso saber que já não estás entre nós, Barbara, minha boa amiga de tantos anos. Não foste poetisa, não foste túlipa negra, não foste intelectual, afirmaste. Mas foste, para todos nós, amantes do teu divino canto, um ser fabuloso que escutou a vida e a viveu com a intensidade que poucos ousam, senhora de soberba voz perturbadora e de uma alma que soube penetrar todos os recantos e sentidos de uma vida plena. Escutada neste instante, a canção criou o elo que faltava aos sentimentos que me ligam a Paris. Um amor condenado mas sempre recomeçado.

Foi muito bom rever-te, Paris, e estar de novo contigo. Cruzei-te quase apenas ao acaso da sucessão dos dias e acabei por não cumprir nenhum dos poucos planos que trouxe de Lisboa. Desta vez, a estada foi um exemplo contínuo de flânerie, ao sabor de contingências várias e da disposição do momento, quase sempre nada boa. Era sincera a intenção de te conhecer melhor, de te percorrer com mais dedicação, de ser mais disciplinado no uso do tempo, que é sempre tão escasso e fugidio quando estou contigo. Sou um mau turista, mas isto já tu sabes há muito. Perdoa-me. Para a próxima vou tentar organizar um roteiro que me guie por algumas das tuas casas mais famosas, onde haja uma placa a assinalar a morada, ainda que fugaz, de uma figura, de um vulto ilustre da história das tuas artes, do teu esplendor. Conhecendo melhor alguns dos teus mais distintos habitantes e devotos adoradores, ficarei a conhecer-te melhor a ti, razão primeira das minhas repetidas visitas. Não preciso de te conhecer a fundo para sentir em mim o teu real pulsar. Basta-me confiar num instinto, numa intuição, numa sensibilidade, que pressentem e reconhecem o que te anima e dá vida. Voltarei uma e outra vez. Fica a promessa. Au revoir, Paris, à bientôt!

Depois de meter o envelope no marco de correio que avisto daqui, só voltarei a vê-lo nas tuas mãos. Mas nem isso é garantido. Percorrerá o mesmo espaço que vou agora atravessar, no bojo de outro avião que sairá daqui ainda hoje ou talvez só amanhã, e dará ainda umas quantas voltas até o carteiro o deixar na tua caixa de correio. Nesse instante, os dados estarão lançados. Só nos veremos dentro de uma semana, se nos virmos, e o mais certo é estas palavras serem o teu primeiro contacto comigo e com os factos desta viagem, se a redoma de silêncio em que me encerraste em incompreensível quarentena de condenado se mantiver. Se entretanto eu não conseguir quebrá-la. Veremos, mas não vaticino nada de bom. Estou a ser sincero, quando o aconselhável, ainda que hipócrita, seria guardar silêncio.

«Passagers du vol AF3022 à destination de Lisbonne sont priés de se rendre à la porte numéro huit. Embarquement immédiat.» Um aviso velho de muitos anos, que hoje pode até soar de modo diferente, com outras palavras e outras frases, mas que conserva ainda e sempre todo o encanto e mistério do anúncio de uma aventura prometida, pronta a desvendar-se.

É o momento da partida. Do regresso a Lisboa. Para ti, tudo de bom. Fica bem. Desejo-te um feliz aniversário e mando-te um último beijo cheio de luz da esplendorosa Paris!

RIC

10 comentários:

Anónimo disse...

Mais uma ficção que se a tivesse lido num sitio insuspeito, poderia dizer: "isto, é do Ric!"
Está lá tudo o que te define, desde o estilo de linguagem, bem defenido e com riqueza de promenores, ao fascínio das viagens, ao teu encanto por Paris, à sensibilidade que te desperta Barbara, enfim, ao teu encontro/desencontro com outras pessoas, que te disseram, dizem ou poderão vir a dizer algo.
É a tal ficção que quase quer alcançar o real, ou por vezes, até o "descuido" do real, tapado com uma ficção.
Enfim, és tu, e isso nota-se e isso é óptimo.
Abraço.

RIC disse...

Olá João C.!
Mas que maravilha! Já me posso aventurar a dirigir-me a algumas editoras! Parece que já reconhecem o «meu estilo»! Rsrsrs! Fico extático, enlevado, deliciado!
A sério agora, muito obrigado pelas tuas simpáticas palavras!
Quanto à relação com o real... Pois, acho melhor dizer-te - de novo! - que qualquer semelhança é mera coincidência... Como tão bem disse Ortega y Gasset, «yo soy yo y mi circunstancia»...
Um abraço! :-)

Anónimo disse...

Mais uma vez, uma belíssima ficção! :-) Obrigada!
Das que tenho lido até ao momento, talvez seja - para mim, obviamente - a mais simples. Mas não a menos bela. Aliás, a beleza está nas coisas simples...
Engraçado como vais ao detalhe do envelope em cima da mesa, junto à tua mão esquerda...Aprecio isso.
(Dizem que sou de pormenores)...Adiante!
Como bem disse o João, neste texto está lá o que te define.Sem dúvida, tem o teu cunho!
Já agora e aproveitando o facto de hoje conseguir comentar, felicito-te pela excelente escolha de Pedra Filosofal no «widget» :-)

Beijinhos!

RIC disse...

Olá Carla!
Não tens de quê! Obrigado eu!
É, de facto, o mais simples. É o arrumar da casa antes do regresso a Lisboa (título). É também o último texto do capítulo, com algumas modificações. Já percebi que sou melhor a descrever do que a narrar. Gosto do pormenor quando acho que pode acrescentar alguma coisa sem encher. Dizem também que o cérebro feminino apreende melhor o pormenor e lida melhor com ele... Não sei. Não tenho conhecimentos sobre o assunto. Teria de perguntar ao António Damásio, por exemplo...
O «widget» foi ainda só uma experiência. Estou a tentar compreender como é que o sistema funciona. Tiveste sorte com o momento em que estiveste «aqui»...
A seguir... Ainda não sei. Mas é capaz de vir por aí tempestade... Afinal, este texto situa-se nos princípios de Janeiro... (É só um cheirinho...)
Quanto a conseguir comentar, apenas te direi que ontem perdi 5 comentários, todos eles relativamente extensos... Imaginas o ataque de fúria, mau feitio, palavrões, insultos...
Desejo-te o melhor!
Beijinhos! :-)

(Há outra menina no «blogroll»... Já reparaste?...)

Anónimo disse...

Ah, mas você é um especialista em escrever textos muito convincentes, hein!
E como você sabe, até já pensei que alguns eram verdade!rs
Grande abraço!

Anónimo disse...

O João C. e a Carla têm razão: tens um estilo quase inconfundível. Há uma marca de água nos teus textos. Cristalina e saborosa.

Nunca te disse, mas gosto muito de aeroportos. Da azáfama das partidas - da descompressão das chegadas. Do trânsito quase ritual. Fizeste-me passear por Orly e isso fez-me bem. :)

RIC disse...

Olá Leo!
Creio que se um texto (mais ou menos literário...) não tiver essa ligação convincente à realidade tem de ser integrado noutro subgénero qualquer: fantástico, ficção científica, etc. E eu, nestas áreas, não me sinto à vontade...
Muito obrigado!
Abraço! :-)

RIC disse...

Olá João M.!
Muito obrigado pelas tuas palavras, meu caro!
Tu também?! Eu sou quase um «deslumbrado» por aeroportos! Já cheguei a imaginar uma «Ode Triunfal» sobre todas as azáfamas moderníssimas aeroportuárias! Rsrsrs! E divirto-me sempre imenso nos dias de viagem! Fico de tal maneira cansado e excitado que perco o sono... Bem, depois é um problema para acertar o passo com o lugar onde me encontro... Rsrs!
Ainda bem que passeaste um bocadinho: tu por Orly e o «eu» do texto por Roissy - Charles de Gaulle...
Um abraço! :-)

Oz disse...

Flâneries em Paris... Foi inevitável transportar-me para algumas das minhas memórias ligadas também a esta cidade.
Penso que esta tua ficção vem no seguimento de outra que nos deste a ler noutro dia, estou enganado?
Escrever uma carta, acto caído em desuso, cada vez mais raro na voragem do hi-tech imediatista, é um acto de generosidade. Sobretudo quando não se espera resposta.
Hoje também escrevi uma assim.
Abraço.

RIC disse...

Olá meu caro Oz!
Ainda bem que por uns momentos te sentiste transportado! Adoro quando também mo proporcionam...
Não, meu caro, não te enganas de todo! Aliás, praticamente todos os textos do separador «Ficções» são pedaços «avulsos» de um texto maior, organizado com outra coerência. Quem sabe se ainda não o verei em papel?...
Creio bem que tens razão... Escrever uma carta sem esperar resposta é, hoje em dia, muito perturbador, ainda que generoso, reconheço. Estamos demasiado dependentes da comunicação bidireccional (vulgo «interactiva») para nos resignarmos com a mera difusão de uma mensagem... «Sending a message in a bottle», definitivamente, já não é dos nossos dias... Mas é arrebatadoramente romântico!
Um abraço! :-)