Allegro vivace con brio
A meio de uma tarde de um Julho já distante, um Boeing 737 aterrava em Frankfurt, proveniente de Lisboa. Um meio-dia quente e abafado deu lugar, três horas depois, a uma atmosfera luminosa, leve e suave, como se uma chuva fresca tivesse lavado o ar, deixando-o cristalino. A mudança foi excessiva e perturbou-me. Era o meu baptismo de voo, e a excitação do momento foi suficiente para provocar uma euforia mais ou menos controlada e um fascínio quase incondicional pelas maravilhas da ciência e da técnica.
O momento em que desembarquei e dei comigo no edifício do aeroporto é o instante mais vívido de todas as experiências daquele Verão. De repente, Flughafen, conquanto significasse aeroporto, passou a identificar Frankfurt am Main, o que não era o mesmo que aeroporto, desde então sinónimo de Portela de Sacavém. Era como se o próprio espaço estivesse distorcido e fossem outras as dimensões. As deslocações no interior do aeroporto sem as passadeiras rolantes são impensáveis, tais as distâncias entre os terminais. Se a Portela de Sacavém era um aeroporto, então Frankfurt am Main não o era. Definitivamente.
E eram também outras as gentes. O 25 de Abril abrira Portugal ao exterior e o «orgulhosamente sós» era já assunto pretérito, mas naquele ano começavam a visitar Portugal apenas os mais afoitos. O 28 de Setembro e a Maioria Silenciosa, o 11 de Março e o Verão Quente, o PREC e o 25 de Novembro não foram propriamente engodos para turistas. Portugal era ainda visto com olhos que deixavam transparecer alguma suspeita, sobretudo por causa da longa guerra colonial, que matara e estropiara muitos jovens e obrigara outros, os ditos refractários e desertores, a partirem e a refugiarem-se noutros países, sobretudo em França, na Suíça, Bélgica, Holanda, Suécia e no Reino Unido. Ainda não era fácil estabelecer contactos com estrangeiros. Alguns meses após ter regressado a Portugal, tive a primeira oportunidade de conhecer estrangeiros em Lisboa. Eram alguns dos novos correspondentes de jornais ingleses e holandeses.
Em Frankfurt, porém, era o mundo em doses bem sortidas e bem aviadas que era servido ao olhar arregalado, provinciano até, do adolescente que a cada passo ia percebendo cada vez menos a razão de ser do abismo entre ambas as realidades. O espanto era tal que, em certos momentos, pensei que não caminhava sobre a mesma Terra que deixara para trás três horas antes. Foi naquele momento que compreendi o verdadeiro significado de algumas passagens de Os Maias que tanto me tinham fascinado. Sem que o pensasse, sentia que acabara de chegar, não de uma capital europeia, mas de um qualquer lugar remoto dos confins do mundo. E o choque aumentava a cada instante. Desmesuradamente.
Os ruídos, esses eram também bem diferentes. Num espaço tão movimentado, onde sem interrupções se cruzavam milhares de pessoas em grupos compactos, o pasmo estampado na minha cara seria visível de longe. Tanta gente e tanto silêncio. À medida que ia atravessando aquela Babilónia, olhava estupefacto através das enormes vidraças. Aterravam e descolavam aviões, uns atrás dos outros, como se o aeroporto fosse uma paragem de autocarros no centro de uma cidade. Por muito que olhasse além dos limites do aeroporto – condicionado pelo hábito muito português de que «tudo está ao lado de, se não estiver dentro de» – nada cheguei, porém, a ver da cidade de Frankfurt. Só viria a visitá-la anos mais tarde. Ponho sérias reservas à actual evolução para o gigantesco e acredito que «Small is beautiful; less than small is more, but less is bore», ainda que certos minimalismos também deixem muitíssimo a desejar. O bom senso é, e continuará a ser, o melhor critério.
Outra era também a iluminação. Comparada com a de Frankfurt, dir-se-ia que a da Portela era à base de lâmpadas amarelas de vinte e cinco watts, daquelas que em tempos idos se encontravam nos candeeiros de mesa-de-cabeceira dos avós. Via-se muito mal dentro do aeroporto de Lisboa. A longa noite fascista estava ainda longe de ter terminado, pelo menos, segundo rigorosos critérios fotométricos…
Duas horas e pouco mais tarde, acabava a segunda etapa do baptismo de voo com a chegada a Berlim. Primeiro, avistei campos e algumas casas. Depois, mais casas e menos campos. Depois ainda, a superfície e os contornos irregulares de um ou vários lagos, não percebi bem, e, por fim, sem qualquer transição, o aglomerado denso do casario urbano e a rede viária complexa como uma teia. De repente, uma ilha de vazio no centro da cidade, onde o avião pousou quase na vertical – Berlin-Tempelhof.
Começara então a iniciação ao grand monde, cheio de tudo o que era mais necessário a um neófito. Muitas aprendizagens e muito cosmopolitismo! E é esta a melhor forma de cultivar o espírito e acarinhar a alma, de criar e desenvolver o gosto de enfrentar, conhecer, compreender, aceitar e até admirar a diferença.
Berlim, a grande rival da Paris dos Anos Loucos! A República de Weimar e a democracia, o advento de uma riquíssima cultura cabaretística, o cosmopolitismo centro-europeu, a novíssima literatura e o novíssimo cinema, os estúdios da UFA e a juventude de Marlene Dietrich. Já depois da Segunda Guerra, o bloqueio soviético e a ponte aérea, naquele exacto lugar, Berlin-Tempelhof. Mais tarde, a construção do Muro, o da Grande Vergonha, como o meu pai dizia. Em breve, teria esse triste espectáculo diante dos olhos. Foram estas as primeiras ideias e as primeiras sensações, ao desembarcar e atravessar o edifício do aeroporto em direcção ao autocarro que nos levou, a mim e a outros bolseiros de outras nacionalidades, pelas ruas de Berlim Ocidental até uma, onde estacionou: Nikolsbürgerstraße. O objectivo principal do estágio, que nos ocuparia nas próximas quatro semanas, era o aperfeiçoamento dos conhecimentos de Alemão e uma melhor compreensão da realidade alemã naqueles conturbados anos setenta.
Conhecemo-nos todos nessa primeira noite, depois de serenadas a excitação e a confusão de distribuir e instalar toda aquela gente. Além do nosso grupo, do qual fazíamos parte três – um tripeiro, uma tricana e eu, um alfacinha – havia o de França, com cinco elementos, o de Itália, também com cinco, o da Holanda, com cinco, o da Suíça, com três, o da Dinamarca, com cinco, o da Finlândia, com quatro, e o da Hungria, com quatro também. Ao todo, trinta e quatro adolescentes, dos dezasseis aos dezanove anos. Um prédio de habitação transformado em albergue de juventude seria o nosso lar nas próximas semanas. E para gáudio de quem tinha de Berlim uma visão quase romântica, encontrávamo-nos a apenas três estações de metropolitano do centro nevrálgico da cidade: a célebre Kurfürstendamm, a Avenida berlinense por excelência, e as ruínas da torre da Igreja da Memória do Imperador Guilherme I, quase arrasada por intenso bombardeamento aliado que contribuiu para impor ao exército nazi a rendição incondicional.
Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche
RIC
10 comentários:
De repente, ao ler o que (d)escreves neste post, lembrei-me do filme "A residência espanhola".
A multiculturalidade é linda!
(... e o "tripeiro" fica sempre bem em qualquer ramalhete.) ;)
Olá João!
Quando vi o filme lembrei-me de uma série de pormenores destas minhas andanças que eu julgava que já estariam esquecidos para sempre...
Esta foi a primeiríssima experiência multicultural. Seguiram-se outras três: Bélgica, Holanda e Alemanha, de novo. Com tempo, hei-de revisitar essas memórias...
Ah, esse «tripeiro»!... Figura castiça! Para os pais dele, um «menino de coro»; entre nós, um sacaninha nada recomendável... Não calculo que rumo possa ter tomado.
Bom feriado!
Um abraço! :-)
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Gostei.
Mas aqui no Brasil não gostamos muito de falar de aviões... XD
E abençoado sejas por Selene ou Diana!
Abraço!
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Olá meu caro!
Sê bem-vindo!
Fico contente que tenhas gostado.
Calculo que aviões, hoje em dia, não seja o melhor assunto de conversa no Brasil, sobretudo no Rio Grande do Sul... Lamento o sucedido.
Muito obrigado! Mas eu prefiro lembrá-la apenas como divindade grega - apenas Selene!
Um abraço para ti também! :-)
Este édito também me fez lembrar o meu baptismo de voo. Embora não tivesse corrido tão bem quanto o teu...
Aqui para nós, que ninguém nos ouve, não tenho grande empatia por este meio de transporte. Assim, que marco uma viagem de avião, começo logo a «sofrer» por antecipação. E só de lembrar que daqui a alguns dias... Adiante!!!
Obrigada pelo passeio que propocionaste através do teu memorial!
Bom feriado!
Beijinho :-)
Olá querida Susana!
Confesso que tenho alguma dificuldade em compreender certos «temores aéreos». Desde miúdo que sou louco por aviões, e esperei até aos 17 anos para experimentar a sensação de voar! Acho que ainda hoje me lembro de todos aqueles 180 minutos! Se tivesse relatado tudo aqui, ainda agora «estaríamos» a caminho de Frankfurt! Rsrsrs!
Não tens de quê, minha cara! O passeio foi meu, o proveito também e o prazer continua a ser todo meu! Rsrsrs!
Um bom 5 de Outubro para ti também!
Um beijinho! :-)
tal como a Shadow também não sinto grande empatia por este meio de transporte, sou fã de comboios. De qualquer modo o meu batismo de voo foi aos 4 anos. A unica coisa que me lembro é de ver a terra aos quadradinhos lá em baixo.
Um abraço e bom feriado
Olá Papagueno!
Cada meio de transporte com as suas potencialidades e os seus limites! Também gosto muito de viajar de comboio, mas inquieta-me muito mais a perspectiva de «voar» sobre carris a 350 ou 400 km/h do que varar os céus a 900... Mera velocidade de cruzeiro.
O voo aqui relatado deu-me a ver Paris pela primeira vez, lá do alto. Experiência única!
Bom feriado para ti também!
Um abraço! :-)
Segui-te, em fantasmagórica transparência, nesta viagem. Repousados os pés, aguardo nova partida.
:)
Olá querida Graça!
Bem, então o melhor será arranjares calçado adequado, porque muito em breve a viagem «down memory lane» prosseguirá, e Berlim será calcorreada à grande e à... alemã!
Muito obrigado pela companhia! Sempre adorei gente inteligente ao meu lado!
Um excelente fim-de-semana!
Beijinhos! :-)
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