«Um incidente irrompe a bordo. Um compatriota tranca-se num lavabo. É um homem com os seus quarenta e cinco anos que, a julgar pelo aspecto, tanto pode ser um executivo bem instalado na vida como um novo-rico bem treinado. Outro compatriota aguarda no exterior, insurge-se contra o colóquio, denuncia ruidosamente a clandestinidade do acto e expõe o que o indigna. «Se este pode, também eu posso, também tenho telefonemas urgentes a fazer.» Parece que ou imita muito bem ou lhe vai dar ali mesmo um tranglomango qualquer, tal a fúria exibida. O primeiro sai então do lavabo, mira o segundo de alto a baixo exibindo um leve sorriso de desdém que lhe põe a boca à banda e profere o veredicto. «Que culpa tenho eu de você não saber fazer as coisas?» Vira-lhe as costas e regressa impante ao lugar. Tudo aquilo tresanda a sobranceria marialva.
É a esperteza saloia de um e a inveja mesquinha do outro.
Só agora me apercebo de que foram muito poucos os portables que vi em Paris, se comparar com a epidemia que grassa em Lisboa. É penoso ver tanta gente por todo o lado sempre agarrada às orelhas, como se sofresse de otalgia crónica colectiva. E mais doloroso ainda é ter de ouvir conversas alheias, umas íntimas e ridículas, outras comuns e absurdas, por ser isto inerente a um povo que sempre terá sido propenso à tagarelice prolixa. Há anos, alguém disse que o telefone era o símbolo moderno das comunicações que nunca ocorrem. O que não diria hoje...
Entretanto, a confusão depressa se espalha por toda a cabina, e dois terços dos passageiros – quase todos os portugueses a bordo – estão de repente de telemóveis em punho, confrontando comissários e hospedeiras com o direito «efectivo» e a necessidade «incontornável» que também eles têm de se servir dos aparelhos. O outro terço é estrangeiro, que só se apercebe do que está a passar-se quando o pessoal de cabina é forçado a intervir. Alguns quase entram em pânico, julgando tratar-se de um acto terrorista. Quando se acalmam, já os portugueses se juntaram em grupos e se lançam numa ruidosa discussão em que todos falam ao mesmo tempo, cada um para seu lado. A verdade é que ninguém quer ouvir ninguém. A intenção é apenas a de sobrepor a sua voz à do vizinho e ouvir-se lautamente. «Se aquele pôde também nós havemos de poder, lá por estar bem vestido julga-se o quê, também somos gente, estes gajos fazem o que querem e lhes apetece e espezinham os outros a toda a hora.» Quase todos os protestos soam no mesmo tom. Mero alarido.
É a coscuvilhice lampeira e a maledicência afiada.
Só duas vozes portuguesas manifestam alguma apreensão quanto à segurança da aeronave. Tomados pelo frenesi que a discussão gera, dois passageiros recalcitrantes avançam decididos a usar os telemóveis, mas são prontamente demovidos do intento por dois comissários. O confronto físico é iminente, e o comandante faz entretanto um ultimato. Ou a normalidade é de imediato reposta para que o voo possa prosseguir, ou ele fará meia volta e regressará a Roissy, para requerer a intervenção das autoridades e apresentar queixa por infracção grosseira às regras de segurança aérea. No mesmo instante todos se sentam, e os telemóveis desaparecem. Mas a mesma lamúria vai manter-se em surdina até Lisboa. «Afinal não aconteceu nada ao avião, são só patranhas que nos impingem para fazer de nós camelos.»
É a cobardia assarapantada a vergar-se à ameaça intimidatória, e a sujeição rasteira a submeter-se à autoridade inquestionável.
Os protestos lamurientos prosseguem como um disco riscado, dando voz a uma muito lusa flebilidade confrangedora. Ninguém acrescenta à disputa nada que interesse. Pouco depois, com os ânimos já mais calmos, chega-me aos ouvidos uma observação sussurrada que me soa surreal, de tão absurda, rebuscada e inacreditável. Mas era o que alguém estava naquele momento a pensar. E disse-o. «Se o telemóvel provocasse mesmo a queda do avião e pelo menos um de nós, por milagre que não seria inédito, sobrevivesse, havia de dizer que só por um grande azar é que o avião tinha caído.»
É o fatalismo, a omnipotente pouca sorte que faz baixar braços, resigna à acomodação e à indolência e iliba de responsabilidades.»
RIC
quarta-feira, 12 de setembro de 2007
Da esperteza saloia e outros vícios…
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8 comentários:
Realmente nunca percebi lá muito bem a adoração dos portugueses por telefones. Éu demorei vários anos até finalmente me render ao telemovel, era quase considerado um freak, um marginal por não ter um desses imprescindiveis objectos. Uma das coisas que eu herdei do meu avô foi não ter muita paciência para falar ao telefone, para mim depois de cinco ou seis minutos começo logo a ficar impaciente.
Um abraço
Uma ficção que retrata bem a (triste)realidade.
Embora seja uma «telemóveldependente»( nota-se muito? lol) , detesto falar para uma «plateia» e respeito muito todos os locais onde não se possa falar/ ligar o dito.
A imagem que ilustra o édito está o máximo :-)
Beijinho :-)
Olá Paulo!
Esta «história» baseia-se em factos reais, ainda que sem as consequências que a ficção lhe atribuiu depois.
Nada tenho contra o uso de telemóveis, mas... Para tudo há uma conta, um peso e uma medida. Nestas coisas de sensatez, porém, nós portugueses somos muito desequilibrados... E o resultado está à vista...
Tive em tempos um amigo que quase tinha ataques de nervos se o obrigavam a estar mais de cinco minutos ao telefone! Rsrsrs! Eu não me importo desde que a conversa não seja da treta; se for, também trato de despachar! Rsrs!
Um abraço para ti também! :-)
Olá querida Susana!
O caso que originou esta ficção foi uma lusa «senhora» que teimava que tinha de saber se a filha e a neta tinham chegado bem a casa... Ela tinha acabado de se despedir de ambas no aeroporto!...
Quanto a seres telemoveldependente não tenho como saber, mas sei que nos dias de hoje, profissionalmente, é impossível escapar à sua presença e ao seu uso. Graves - isso sim! - são os despudorados espectáculos que as pessoas dão... Mas isso é mais um índice da educação de cada um. Ou da falta dela...
A imagem também me agradou especialmente!
Um beijinho «to you too»! :-)
Amigo,
gostei muito deste texto.
Espero que alguns "saloios" o leiam e aprendam qualquer coisinha.
Um destes dias numa bomba de gasolina estava uma senhora a encher o depósito e a falar ao telemóvel, mais parecia o autifalante da bomba, quando lhe disse:
- Não devia estar a utilizar o telemóvel tem um sinal de proibido mesmo à frente dos seus olhos, sabe o risco que todos corremos?
Ao que aquela mente brilhante me respondeu:
- Oiça lá, meta-se na sua vida, o.k.? Só me faltava esta agora a pensar que manda em mim.
-Eu não mando nada a senhora é que nos pode mandar pelos ares, mas tudo bem, com o telemóvel nas mãos decerto vai ser a que fica com o penteado mais fashion.
Segui a minha vida e quando saí reparei que o funcionário da bomba a voltou a alertar e ela insistia que o mundo conspirava contra ela.
Existem umbigos especiais.
Beijinhos
Yo
Olá minha querida Yo!
Sabemos ambos bem o que é, entre nós, a falta de consciência cívica que - também! - decorre da grande falta de educação generalizada do nosso povo. Se estamos na cauda da Europa em tantos aspectos é porque tem de haver causas muito concretas para tal.
Quanto ao desejável facto de os «saloios» aprenderem com este texto alguma coisinha, seria em primeiro lugar necessário que soubessem REALMENTE ler! Como a evidência é a contrária, só poderei esperar que um ou outro entenda alguma coisa... Mas... «Nada posso ensinar a quem não quer aprender»! É uma máxima antiga que continua a ser validíssima!
Muito obrigado pelo teu relato! Ilustra muito bem a mentalidade hoje dominante entre nós!
Muitos beijinhos! :-)
Realmente...é daquelas coisas que não se entendem: que os miúdos de 16 anos não passem sem telemóvel, até percebos; já nasceram a vê-los; agora que pessoas de 35, 40, 50 anos dêem os espectáculos que dão ( eu ando de comboio na linha de Sintra e, ás vezes não sei se hei-de riri ou chorar com as conversas...). Há 20 anos não se usavam telemóveis e viviamos felizes e comunicantes...incrível não é? Eu sou como o Special k, chamadas com amis de 4 minutos tendem a desligar-se "sozinhas" do meu telemóvel. Em compensação , uma hora a conversar em frente a um copo de qquer coisa é sempre benvinda. Manias...
Belo texto, ric. Beijinhos
Olá S.M.!
Fico contente por teres gostado! Este texto tem uma segunda parte (quase em «pendant») que um dia destes virá também aqui parar.
É de facto em espaços públicos que os «shows» se sucedem a um ritmo alucinante: tenho assistido a «cenas» no CCB que, fosse eu pessoa de corar, ficaria decerto vermelho que nem um pimentão... E protagonizadas por gente que... Fico-me por aqui...
Beijinhos para ti também! :-)
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