sexta-feira, 13 de julho de 2007

«O Sentimento de Um Ocidental»

… «E releio, até me arderem os olhos, o Livro de Cesário Verde.»



A Guerra Junqueiro

I

AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!


Devagar se vai ao longe.
As duas partes seguintes deste grandioso poema e sublime políptico da Lisboa do final do século XIX ficarão para a próxima semana, porque cada verso deve ser degustado na sua espantosa perfeição.
Como é que Fernando Pessoa não poderia ser um incondicional admirador de Cesário Verde?...

Se, no ser Português, não amarmos isto, então o que nos resta para amar?

A todos um excelente fim-de-semana!

RIC

12 comentários:

Catatau disse...

Talvez nos reste a esperança de amar!... :)

Bom fim-de-semana.

RIC disse...

Olá João M.!
Pelos olímpicos deuses que alto moram! Que fasquia mais baixinha! É por essas e outras que tais que estamos como estamos...
Amar intransitivamente existe, mas só em acto; o amor humano tem de existir em potência, senão é mero desiderato... (Reporto-me a Aristóteles, sem qualquer jocosidade.)
Um excelente fim-de-semana também para ti!
Por aqui, vai haver festa da grossa!...
Abraço! :-)

Anónimo disse...

desculpa não ter deixado comentário, mas a minha net em casa anda tão lenta, que a maioria das vezes acabo por não comentar nada em lado nenhum, embora siga os blogs atentamente... André Benjamim Estou a comentar com outra conta da google, não ligues. Abraço.

RIC disse...

Olá André B.!
Muito obrigado pelo teu cuidado! Vou organizar-me de modo a dar a resposta logo no início da próxima semana. Este fim-de-semana será dedicado integralmente à comemoração do primeiro aniversário do blogue. Haverá de tudo para todos os gostos, espero eu!...
Agora entendi a ausência de comentários. Obrigado.
Abraço! :-)

João Roque disse...

Ao ver a belìssima foto deste post, lembrei com saudade que a escolhi, há já muitos meses para ilustrar um poeme de Cesário Verde, associado a uns longos dias de chuva, cá por Lisboa, recordas-te, Ric?
Cesário, com um só livro, é dos poetas mais românticos e que melhor escreve, na sua época.
Bom fim de semana.
(o que virá por aí????)
Abraço.

RIC disse...

Olá João C.!
É o poeta da cidade de Lisboa. Com ele, vai-se caminhando pela cidade, a diferentes horas, com tempos atmosféricos diferentes, com variados estados de alma.
Tens razão! Devíamos dar uma vista de olhos pelos arquivos uns dos outros com mais frequência. Eu não tenho esse hábito, e talvez seja má ideia... Nunca fiz isso em relação ao teu (por ser um contacto diário) e agora... chapéu.
Se não fosse o amigo, nem um livro teríamos... Chamas-lhe romântico - e percebe-se bem porquê -, mas ele é um realista, tal como o Eça. O moderno discurso poético em Português foi ele quem o criou...
Quanto ao que aí vem, queira aguardar, está bem? Rsrsrs! nada de especial... Vejamos o que se consegue arranjar...
um excelente fim-de-semana para ti também! Abraço! :-)

André disse...

hoje tens direito a dois comentários, para compensar! ;)

Abraço

RIC disse...

... Ah muito obrigado! É muita simpatia tua! E afinal, eu tinha razão ou não? Pensava que tivesses vindo tirar-me a dúvida... :-(
Mas hei-de vir a saber... Rsrsrs!
Abraço, meu caro!
Excelente fim-de-semana! :-)

Special K disse...

Que beleza, as palavras de Cesário dedicadas ao meu caro Guerra Junqueiro, um poeta que me traz sempre as memórias do meu avô.
Um abraço.

RIC disse...

Olá Paulo!
Ah bem! Começa a fazer-se alguma luz sobre essa tua apetência pela poesia: está na massa do sangue e passou de geração em geração. Cada vez me convenço mais que o que é dado a conhecer na primeira década de vida è quase determinante em absoluto para o resto da vida... O meu pai adorava livros e o meu avô ensinou-me a desenhar... Desenhei sempre muito mal, mas o gosto foi educado, o que é fundamental!
Um abraço para ti também! :-)

Special K disse...

O gosto pela leitura, que anda em baixo por causa da internet, foi por culpa do meu avô. Quanto ao Guerra Junqueiro era o poeta lá da terra por isso sempre ouvi falar dele desde pequenino. Herdei alguns dos livros dele, um deles é uma edição da "Velhice do Padre Eterno" bem velhinha com ilustrações de leal da Câmara.
Não saber desenhar é um dos desgostos da minha vida.
Um abraço.

RIC disse...

Olá Paulo!
Calculo que, sem ironia, queiras dizer «graças a» em vez de «por culpa de»... Quanto à conjugação da leitura (de livros, bem entendido) com a internet, também me tenho visto em apuros... Mas como as minhas fidelidades tendem para o canino, há momentos em que pego no livro que quero mesmo ler e saio por fora. É a única maneira - até agora - de conseguir escapar... Veremos se conseguirei organizar-me melhor...
Ah pois é, a importância da infância!... Que privilégio, essa tua herança! E as recordações que terás!
Para mim, pior do que o desenho é a música. É mesmo um desgosto não saber tocar um instrumento... E o meu teria sido o piano...
Um abraço! :-)