O hábito de escrever acabou por enraizar-se fundo no quotidiano recente pela simples força de um capricho. Também aqui o insiste-insiste dá os seus frutos. O treino é tudo, ou quase. Pego no bloco que tem sido a boa companhia destes dias e começo a escrever um esboço de diário de bordo, só para me distrair. Nunca chegará a sê-lo, bem sei. Não passará de meia dúzia de apontamentos que, mal chegue a Lisboa, o mais certo é metê-los numa pasta qualquer que irá parar ao fundo de uma gaveta. Não seria a primeira vez.
A pouco mais de duas horas de Lisboa, tento dominar uma inquietação invasiva e recuperar alguma tranquilidade. Sou arrastado por um turbilhão de sensações, sentimentos e emoções indestrinçáveis, sem descortinar que ordem virá destruir este caos. Vou entredizendo as mesmas frases, pausadamente, na esperança que da monotonia do acto venha o efeito calmante, quase dormente, como uma litania ou uma lengalenga. Mas a inquietação teima em persistir e parece mesmo aumentar. Não são muitos os passageiros que seguem comigo para Lisboa, quase todos eles portugueses. Depois de uma indecifrável refeição plástica servida no lapso que medeia entre a entrega e a recolha de um tabuleiro, mantenho a mesinha rebatível aberta à minha frente, peço mais um café e vou-me obrigando a este solilóquio que parece poder reconciliar-me com a serenidade perdida.
Espreito pela vigia, e o que os olhos me oferecem consegue por instantes acalmar-me. Pairo sobre um alvo mar de algodão-em-rama que reflecte a luz crua do sol, um incómodo para olhos já habituados à penumbra de Inverno. Vão-se fazendo e desfazendo minúsculos cristais de gelo na juntura da vigia com a fuselagem, como um colar de microscópicos brilhantes refractando a luz em sucessivos arcos-íris e acendendo um formidável caleidoscópio. Acima deste mar há apenas o azul luminoso e cavo da alta atmosfera. Se o avião se afastasse indefinidamente da Terra, começa o devaneio, o azul passaria ao negro de breu do espaço sideral, pontilhado pelos cerca de duzentos mil milhões de estrelas existentes em todo o Universo, dizem. Imagino-me a caminho de um destino algures no espaço exterior, já não num avião mas numa nave a propulsão iónica ou helioeólica ou fotónica, por um túnel através do espaço-tempo, ansioso por compreender o que haja mais além. Vou-me interrogando sobre que paisagens se ofereceriam à contemplação, que jogos de luz e cor me toldariam a visão, que belezas outras e que temores me subjugariam os sentidos e revolveriam o espírito. Um esplendoroso cosmorama de sonho.
Terá sido há quase catorze mil milhões de anos que, num espaço que não seria ainda espaço, uma espécie de assombrosa explosão terá dado origem a tudo o que existe, sendo este tudo tanto o que foi como o que é. Terá ocorrido numa ínfima fracção de segundo – dez elevado a menos quarenta e três, dizem –, lapso de tempo que nunca conseguirei conceber. Mas quem sou eu para conceber dimensão tão diminuta, mesmo que percebesse alguma coisa de Matemática e do que aquela potência traduz?
Se a velocidade da luz tiver diminuído de acordo com uma constante ainda por desvendar, esse tudo-o-que-existe é também o tudo-o-que-virá-a-existir. Esta talvez seja uma forma muito simples de um leigo se aproximar, de mansinho, da compreensão do contínuo espaço-tempo. Se não for, não vislumbro melhor caminho. Tal como se sabe que um dia o Sol se apagará, talvez se venha a prever que, à distância de muitos milhares de milhões de anos, um fulminante apagão cósmico deterá tudo o que a explosão primordial pôs em movimento, como se o universo inteiro seja tragado por um único buraco negro incomensurável. E o derradeiro silêncio, o absoluto, dominará um espaço que voltaria de novo a não ser espaço. Esse espaço talvez tenha sido a face do deus da criação e volte a sê-lo. Pode ainda ter sido visível durante a ínfima fracção de segundo que logo se seguiu à gigantesca explosão, instante para todo o sempre interdito ao olhar humano, dizem. O universo primevo terá sido simples e invisível.
Interrogo-me a medo se terá sido realmente simples e invisível. Se antes da portentosa explosão haveria movimento ou repouso. Se o infinito é tempo e espaço juntos. Enfim, interrogo-me, remexendo fundo na mais impérvia ignorância. Que mais poderá fazer uma ínfima partícula de pó estelar? A cosmologia e a teologia parecem irmanadas num acordo concertado, quem sabe se para garantir que o mistério do deus permaneça oculto, mesmo que um dia se percorra o cosmos à velocidade da luz, em direcção ao instante inicial. E mesmo que se venha a fazê-lo, um esconso privilégio que lhe concedesse a ele, homem, a visão da face desse deus seria só mais um mistério a adensar a massa interstelar e a juntar-se a todos os demais. A mim, mais uma vez, eram apenas as questões do princípio e do fim que não me davam tréguas. Como os do amor.
A turbulência de um poço de ar abala de vez o devaneio, e no limite de um reflexo automático evito que a chávena ainda cheia tombe e me derrame o café por cima das calças. Enquanto sorvo mais um gole, continuo a sentir a mesma intranquilidade, o mesmo desassossego, que há dias não afrouxam. É um nervosismo que não vai acabar nem diminuir com a chegada a Lisboa, um doloroso pressentimento que se tem exacerbado desde o Ano Novo. A primeira tarefa que poderá trazer nova vida ao novo ano é a de aliviar este amargo vazio de desamor. Começo a crer que outrem possa ser a causa do pertinaz afastamento, do silêncio hostil. Mas ciúmes só viriam toldar ainda mais a débil visão dos acontecimentos. Não quero ceder agora a uma suspeita que desprezo e que sempre tentei combater, até enfim perceber que exigir moderação a um sentimento é tão absurdo como querer pintar uma parede a crayon. É possível mas é inglório, tanto pela tarefa como pelo resultado. O melhor é ir recolhendo o fio do tempo tal como ele se for desenrolando e, ao tocar a ponta solta, então sim, sentir o que houver a sentir e decidir o que houver a decidir. Se só reajo com esta frieza impassível, com esta placidez podre de indiferença, então é porque a tarefa estará facilitada. Não haverá muito mais por que me deva ou possa bater.
RIC
segunda-feira, 9 de julho de 2007
La vie en rose ou… l'avion rose?
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16 comentários:
HAuahuahauahuahauhauahuah1
Se não fosse o flag "ficções" eu ia te perguntar se a viagem tinha transcorrido bem!! hauhauahuahau!
Tudo bem, meu lindo!
Estou meio afastado, mas voltando!"
Beijão!
Olá Ricardinho!
Por acaso, meu caro, a viagem em si, isto é, o voo, é a única coisa que não é ficção! Rsrsrs!
Quanto ao resto, é conforme... Rsrs!
Grandes encontros de bloguistas na Cidade Maravilhosa, hein? Que bom!
Parabéns pela vitória do Cristo Redentor!
Quanto a estares meio afastado, nem me parece assim tanto... se comparar com o total desaparecimento do teu Lê! Vai ter de se explicar, ou eu não lhe perdoo! Rsrsrs!!!
Abração e beijão pra vc! :-)
Questões de fim e princípio que não dão tréguas como as de amor? O amor é uma trégua magnífica entre a ansiedade e a beleza da emoção, meu caro Ric! :)
(Pronto, cá temos mais um menino que só admite contas de blog, rsrsrsrs...)
Não gosto de pensar na imensidão do universo nem no infinito do tempo que ele tem.
Cada vez mais, gosto de saborear cada segundo da vida que é, só pelo milagre de existir, mais uma estrela no firmamento....
Ai que me puseste melancólico.. (mais ainda)
Abraços
Olá João M.!
Peço desculpa, mas... leste mal. O que está escrito é: «... eram apenas as questões do princípio e do fim que não me davam tréguas. Como os do amor.» Ou seja, não são as tréguas que estão em causa, mas sim o princípio e o fim do amor.
Tive especial cuidado com o final desse mesmo parágrafo!...
Quanto a essa trégua, meu caro, não passa de um equilíbrio (muito) instável... É excitante, sem dúvida, mas não é mais do que isso. Digo eu...
Se te incomoda a conta do blogue, diz, meu caro! Sério! Ainda que agora esteja ao abrigo dos ociosos que não têm mais nada que fazer senão escreverem «comentários» anónimos, não tenho qualquer problema em repor as definições anteriores. Está bem?
Um abraço! :-)
Olá Teddy Bear!
Reconheço que também para mim é de algum modo uma situação-limite pensar em tais coisas... É mais um devaneio ou um delírio que um acto reflexivo...
A literatura (não é aqui o caso, óbvio!) também serve para nos chamar à vida, para nos fazer ver o que podemos e devemos fazer com ela, para também valorizarmos a existência. Se isso nos puser um pouco melancólicos, não virá por aí mal ao mundo...
Se calhar, foi mesmo o fim-de-semana que te pôs melancólico, e não exactamente o meu textinho... 'Tou certo ou 'tou errado?! Rsrsrs!
Um abraço para ti também! :-)
Eu não ando de avião desde os 4 anos e para o ano se calhar vou ter que o fazer e já estou nervoso. Lol.
Adorei os teus pensamentos lá no alto. E é um lindo trocadilho o do título do Post.
Um abraço e boa viagem.
Não sei se é pelo facto de não gostar de andar de avião (ainda tenho bem presente a péssima e última viagem de aproximadamente 12horas) está ficção deixou-me «turbulenta». De qualquer das formas, não será por isso, que ficarei menos ansiosa pela chegada a Lisboa. ;-)
Não me parece que seja uma atitude assim tão fria...talvez sensata, não? As últimas linhas transportam-me (e não me perguntes porquê)para as palavras de um poeta alemão que alguém me fez o favor de dizer/escrever: « Aceita as horas como vêm vindo/Ninguém tas devolverá».
Obrigada!
Beijinhos :-)
Olá Paulo!
Andei de avião pela primeira vez aos 17 anos e achei o máximo! Sou um bocado deslumbrado pelos prodígios da técnica, reconheço, mas só o facto de saber que em meia dúzia de horas posso estar noutro sítio completamente diferente faz-me ser um incondicional do transporte aéreo... Rsrsrs!
Vais ver que vais adorar!
Quanto ao título, os créditos não são meus. Limitei-me a reconhecer que o nome de um blogue (L'avion rose) remetia para «La vie en rose» (o Francês presta-se na perfeição a estes jogos fonéticos). Quando procurava um título para o texto, a propósito do avião lembrei-me de L'avion rose e percebi que fazia sentido.
Acho que ainda vou ter de pagar «royalties»... Rsrs! Mas não faz mal: o «senhor do blogue» é um querido!
Merci beaucoup!
Um abraço para ti também, meu caro!
:-)
Olá Carla!
Boa! Vinte valores! Como dizem «os outros», «what goes round comes around», não é? Quem terá sido o espertinho que te citou o poeta alemão, hein?...
Tu já fizeste um voo de 12 horas?! Deuses! Deve ser demolidor! Conheço algumas pessoas que simplesmente adoeceram após a chegada! E ficaram mesmo de cama! Se a curiosidade não me matar, onde é que a menina foi? Aos antípodas? Austrália? Nova Zelândia? Patagónia? Alasca? Vou rebentar de tanta curiosidade! Socorro! Rsrsrs!
O meu recorde está nas 7 horas, e duvido que o bata...
Quanto à chegada do narrador a Lisboa... aguardemos com paciência o que ele tiver para nos contar/revelar...
Essas mesmas últimas palavras, a mim soam-me a resignação... A viagem e o afastamento poderão não ter surtido o efeito pretendido... Reconhecendo que não, resigna-se...
Veremos, minha querida! Teremos mais oportunidades de esquartejar este narrador (Cruzes! Salvo seja! Pobre coitado, que ás minhas mãos sofre tratos de polé!...) Rsrsrs!
Espero que esteja tudo bem melhor contigo! Sobretudo, morte às gripes!
Não tens de quê, obviamente!
Beijinhos para ti também!
:-)
Amigo Ric
voltando aos comentários, depois das "turbulências" que passei estes últimos dias, devo dizer-te que andar de avião, é sempre para mim, um misto de gozo e de algum temor, pois, se estou ciente das estatísticas, sei que não tenho os pés assentes na terra; e já apanhei, alguns pequenos sustos.
Mas, o objectivo do texto não é o medo das viagens de avião, mas sim , outras "viagens", muito mais complexas, e que, por uma questão de comodidade, confesso, como noutros assuntos, procuro, não pensar demasiado, pois sinto-me desconfortável no emaranhado dessas teorias, embora reconheça que devem ser discutidas e principalmente muito meditadas.
Abraço.
Olá João C.!
Assim é que é e vamos em frente!
Pois, de facto, não é propriamente de medos pânicos de viagens aéreas que o textinho trata...
Como diz um poeta da nossa preferência, «pensar é estar doente dos olhos». Eu sou míope... Muitas vezes dou comigo a pensar demais, nalguns casos mesmo, a matutar, o que não é nada saudável, reconheço, mas sou assim... No texto, esse pensar simboliza quanto a mim a fuga ao sentir, um devaneio nervoso, um delírio. Só isso.
Muita força e... estamos aqui ao teu dispor!
Um abraço! :-)
Eu sou o "senhor do blogue" L'Avion Rose e não só me orgulha a escolha, como não vou nem posso cobrar royalties ou qualquer outro tipo de direitos de autor. Isto porque não fui eu que criei a expressão, apenas me apropriei dela ao fim de muitos anos, já que o amigo que a usava como trocadilho com o «La Vie en Rose» da Piaf pela fabulosa Grace Jones, nunca voltou a ele. Já meu, apenas meu, é o terceiro significado que se extrai da sigla: LAR. Fantástica esta coincidência, não?!...
E de queridos e queridas estamos já todos fartos (eu sou só mais um). Mas muito obrigado, no entanto.
So me resta acrescentar uma coisa: desejo-te má sorte no jogo. Dizem que ajuda!
Olá Luís!
«Ai que é agora que eu vou pagá-las bem pagas!...», pensou Ric quando abriu esta página e viu que o novo comentário era do Luís...
Não percebi à primeira a tua referência aos «queridos», pelo que fui fazer o trabalho de casa: ler os comentários e as respostas. Devo realçar que não sou de usar certas palavras e expressões ditas de afecto de ânimo leve. Assim, ao dizer que és um querido é porque o sinto como tal, especialmente; decorre do que tenho vindo a conhecer de ti.
Do acróstico LAR não me tinha ainda apercebido. Tens razão, é espantoso!
Quanto aos teus votos - e assumindo que o «eu» ficcional sou eu... -, muito obrigado, mas não creio que resulte: é que eu nem sequer jogo, tal a aversão!... Logo, nem dou azo a que a oposição jogo/amor funcione para o meu lado... Incompetências...
Um abraço! :-)
Se te servir de consolo, eu também não jogo: acho que se essa sorte estivesse no meu destino eu acharia na rua o bilhete de lotaria com o 1º prémio. No que diz respeito ao amor, eu não quero mudar. Isso deve ter algum significado, não!?...
PS - Kuando falava do Kanguru era porkue nós também somos (há um par de meses) utilizadores do serviço. Kuantas coincidências...
... Bem, não posso dizer que me serve de consolo, mas... Rsrsrs! Agradecido...
Graças a uma estranha intuição em que nunca confiei tenho acertado em coisas que nem nos meus mais estapafúrdios sonhos ousaria aproximar-me... Direi apenas que é uma «incompetência estrutural», ou seja, não é defeito, é feitio...
«Kuanto ao Kanguru, parece-me kue mudei para melhor. Estava a ser indecentemente roubado pelo anterior servidor... Por isso é kue acho kue devemos partilhar estas informações para enkostarmos os bandidos do merkado à parede! Já chega de ladrões por tudo kuanto é sítio! Arre!»
Abraço!
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