terça-feira, 26 de junho de 2007

Eu e tu…

Sou sempre o primeiro a dizer as coisas pela segunda vez.
Jean Cocteau

Encontrámo-nos numa destas minhas viagens na esplêndida Amesterdão, uma das Venezas setentrionais. Outras há, como a nórdica Estocolmo ou a imperial S. Petersburgo, que lhe disputam o título no eterno convívio íntimo com as prístinas águas fundadoras. De início, todo o tempo foi pouco para lançarmos os nossos passados um sobre o outro, na ilusão de que assim nos conheceríamos melhor e mais depressa. Como se cada um arrastasse um atrelado, trazíamos a reboque uma carga, um fardo acumulado pelos anos. Na encruzilhada do encontro, acreditando que conciliaríamos as nossas histórias como quem sabe atrelar as carruagens do comboio da vida, tentámos juntar os fardos em apressadas conversas aos solavancos. Goraram-se as intenções, e as atitudes foram tão insensatas como levianas. Ao leres estas palavras, talvez compreendas melhor uma parte do que eu trazia comigo quando os nossos caminhos se cruzaram. Talvez isso nos reaproxime. Ou nos afaste de vez. O futuro ditará para que lado a balança há-de pender. Com ou sem justiça.

Um dia perguntaste-me se tinha o hábito de escrever cartas ou postais enquanto viajava. Não me lembro exactamente da resposta, mas devo ter dito que já não o fazia há muitos anos e que raramente tinha tempo para essas gentilezas. Não deves ter gostado e quase me obrigaste a prometer que da próxima vez haveria de te escrever. Achei que se fizesse a promessa estaria a comprometer-me à toa. Ou pior, estaria a mentir. Nada prometi e quase esqueci a conversa. Quando a contragosto soubeste desta viagem voltaste a insistir. Ainda me ocorreu negar-te o capricho, mas como não podia prever que disposição me reservaria a quadra natalícia que se aproximava, deixei a resposta em suspenso. Logo se veria. E uma vez mais não terás gostado, sem que isso, ainda assim, te tenha incomodado por aí além. Não voltaste a dizer palavra sobre a viagem, então ainda apenas uma hipótese. Às vezes pergunto-me o que é que têm para dar um ao outro dois egoístas ou egotistas, egocêntricos ou individualistas, que nunca se sabe muito bem quando e como se é o quê. Terão pouco, é certo, mas o pouco que dão não é regateado. Isso, ao menos, é garantido.

No Verão passado tive de adiar as férias. Tentei falar contigo, mas não me deste qualquer atenção. Liminarmente, «cortaste-me as vasas», para usar a expressão que te é habitual. No teu primeiro dia de férias, na mais excitada azáfama, fizeste as malas em grande euforia e, no dia seguinte, ias a caminho de um desses destinos da moda, nas Caraíbas dos pacotes turísticos promocionais. E nem sequer tiveste a amabilidade de uma palavra de consolo por eu ficar sozinho em Lisboa, mergulhado em trabalho. Nem antes, nem durante, nem depois. Em Outubro, eu estava arrasado, com muito pouco ânimo para prosseguir, e já não distinguia se era um profissional que começava a sentir-se frustrado, se um frustrado quase profissional. Tenho combatido conforme posso o cansaço causado por alguma inevitável monotonia, já que sei ser esta a última oportunidade, antes do próximo Verão, de me afastar da rotina e gozar de algum descanso. Mas nem nisso terás querido atentar, e eu não te falei de mais nada. Os afazeres profissionais têm-nos sugado as energias, as poucas que sobram nunca são demais para enfrentar dissabores e embates, os comezinhos, e não tem sido fácil desfazer mal-entendidos. Só os ínfimos, os do dia-a-dia, é que ainda vamos conseguindo ultrapassar, ainda que mal e com grande dificuldade. Tudo isto temos ambos pensado, decerto, mas não no-lo temos conseguido dizer. E o silêncio, que umas vezes é de ouro, outras veneno, tem asfixiado as palavras que forçam o caminho até à garganta, para aí as abandonar à mercê de uma muda indiferença, que as suprime.

Ainda cheguei a dizer-te que, se tivesse férias no fim do ano, me afastaria de Lisboa, caso pudesses e quisesses acompanhar-me, mas ignoraste as minhas razões. Ou melhor, nem as quiseste ouvir. Acusaste-me depois de que era de ti que me queria afastar. Claro, atendendo a quem se tem em nímia conta, não seriam de esperar outras palavras. Entretanto, já esqueceras o teu Verão nas Caraíbas e o meu, cheio de trabalho, sozinho em Lisboa. Calei-me para evitar mais uma discussão absurda. Há uns dias limitaste-te a anunciar que, caso eu fosse para fora, quando voltasse, tu não estarias em Lisboa. Que decidiras viajar a seguir ao Natal e só estarias de volta em meados de Janeiro. Que esperasse por um telefonema teu no segundo sábado do mês. Não quiseste dizer para onde irias, e eu também nada perguntei.



Villa Adriana, Tivoli, Roma


Neuer Potsdamer Platz, Berlin


Station Musée du Louvre - rue de Rivoli, Paris


E hesitei entre três destinos possíveis. Roma, la Città Eterna, Berlim, die Kulturmetropole mit vielen Gesichtern (1), e Paris, la Ville Lumière. Apesar de tudo, e com muita mágoa, foi-me relativamente fácil eliminar Roma. Queria gozar uma semana tão tranquila quanto possível, e a Cidade Eterna não se presta muito a desejos bucólicos. Berlim seduzia-me bastante, até porque já lá não vou há uns bons anos, mas não o suficiente para me fazer esquecer o frio intenso com que este Inverno parece querer pôr toda a Europa a tiritar. Os Invernos parisienses também não são amenos, é certo, mas suporto-os bem. Fui-me assim habituando à ideia de que Paris seria, mais uma vez, o destino ideal e, quando pensei no tempo de viagem, a decisão ficou tomada. Duas horas são o lapso de tempo ideal que se pode passar sem complicações dentro de um avião. Mais tempo torna-se cansativo, e menos tempo não compensa as deslocações entre as cidades e os aeroportos. Propus-me então telefonar à Madame Rivier, a proprietária e gerente do hotel onde há anos costumo hospedar-me, na esperança meio desolada de ainda conseguir reservar um quarto. E uma providencial desistência horas antes permitir-me-ia ocupar o meu quarto preferido. Era o sinal.

Paris é metrópole que ainda atrai, fascina e seduz quer turistas quer viajantes, mas há muito deixou de ser aquele lugar mítico a que se acorria ansiosamente em busca de tudo o que faltava, mesmo do pão para a boca. Ia-se a salto adensar subúrbios de bidonvilles. Abandonava-se este espaço de sombras, onde a noite tremenda se mantinha dona e senhora de um estéril estado de irreal hibernação. Um imenso vácuo de tudo repelia os muitos que se aventuravam a orbitar os autênticos astros de luz e de vida. Cada um que se lançava à aventura reiterava a ascensão da sombra à luz. E «o dia livre e claro» surgiu, e de fontes ressequidas jorraram utopias e sonhos que várias gerações juntas fizeram seus, perseguiram e concretizaram como sabiam e podiam. Ou não souberam e não puderam. Não sei rememorar este tempo de outro modo. Que se tenha chamado Revolução e assim o tenha vivido é agora mais motivo de dorido esgar de resignação que de lamento por uma oportunidade rechaçada. «A revolução já acabou. Naquele país só há ódio», terá desabafado então Jorge de Sena… Hoje, que o sol já vai bem alto sobre esse horizonte, sobejam migalhas do pão farto avidamente devorado, restam escorropichos do vinho generoso sofregamente engolido e tudo está amorfamente reconduzido a uma nova ordem de mitos avulsos e baços, iguais a coelhos saltando para fora das cartolas de uma ubíqua tecnologia, de que muitos têm pressa de usufruir sem pensar, mas de que só alguns gozam plenamente. Acaso só aqueles que nunca souberam o que significa ter de ansiar pelo «dia livre e claro» e para quem a noite era, é e será sempre luz bastante.

Como tudo o que reflui a um estado imposto de repouso e esquecimento apenas aparentes, também os autênticos astros de luz e de vida permanecem expectantes, na certeza de que o sol destes dias é um sol virtual deste Inverno planetário e que hão-de resistir e renascer nos vislumbres dos novos caminhos para outros lugares míticos, que haveremos de percorrer logo que a coragem seja bastante para desligar este sol enganoso e doentio. Como em muitos actos da vida, há que carregar no botão certo no momento certo, e para várias gerações esta espera é já a eternidade. Mas, entretanto, paira no ar um aliciante aroma a futuro novo. Talvez Paris não volte a ser o nosso lugar mítico, mas outro «dia livre e claro» há-de enfim nascer. Tudo o que chega parte. Voltará decerto a haver pão farto e vinho generoso.

Sem saber bem porquê, dispus-me a reservar algum tempo, todos os dias, para te escrever umas linhas. Não me incomoda que esteja a ceder a um capricho. Quem sabe se não será esta a forma ideal e subtil de contrariar o meu egoísmo sem que isso me perturbe. Mas não as receberás em cartinhas ou postaizinhos, que a cedência não será tão benévola. Ao regressar a Lisboa, tenciono meter tudo o que tiver escrito num envelope e enviar-to dos correios do aeroporto. Aqui fica a promessa solene, mesmo que entretanto nada venhas a saber desta minha intenção. Quando eu voltar, nada terás ainda recebido e hás-de ficar à espera até dares com o envelope na caixa de correio. Talvez a atitude seja castigadora, mas tomo-a sem quaisquer intenções obscuras. E, para ti, não deixará de ser uma surpresa. O que pensares do seu conteúdo é pouco relevante, pelo menos por agora. Foste tu quem me desafiou, não te esqueças, e vou apenas realizar o teu desejo. Em circunstâncias semelhantes, é sabido que não raras vezes se vira o feitiço contra o feiticeiro, ainda que tão-pouco seja essa a minha intenção. É provável que te surpreendas com alguns textos ou mesmo que te irrites com um ou outro apontamento. Não posso antedizê-lo. Estes primeiros, escrevo-os ainda em Lisboa, e talvez os junte aos que vier a escrever em viagem. Não penses, por meios ínvios como se tornou teu hábito, que almejo alguma vingança. Tratarei de ser apenas o cronista dos factos quotidianos. E lembrei-me de uma máxima do Génio de Weimar: «Eine Chronik schreibt nur derjenige, dem die Gegenwart wichtig ist.» (2) É o que sinto agora, que o presente é cada vez mais importante, ao invés de outros momentos em que me preocupei, talvez em excesso, com o passado ou me virei, com exagero expectante, para o futuro. É no presente que tudo está e tudo se decide. O passado narra-me e o futuro imagina-me.

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(1) A metrópole cultural de muitos rostos.
(2) "Uma crónica só escreve aquele, para quem o presente é importante."

RIC

18 comentários:

Râzi disse...

Ficções????

Menino... e eu achando que era tudo verdadeiro!!
Hauahuahauahuahauha!

Beijão, meu lindo!

RIC disse...

Olá Ricardinho!
Provavelmente, de todos os textos do separador «ficções» este será o mais ficcional de todos...
O estilo é confessional, mas não é uma confissão... Rsrsrs!
Ainda bem que te divertiste com a leitura!
Beijão e abração para ti também!
:-)

Anónimo disse...

Sabe que quando eu comecei a ler eu também achei que era um texto real?!rs
Aliás, muito bem escrito.
Abração!

Anónimo disse...

Ora cá temos uma bela história do desencontro do querer. Do desencontro dos gestos. Do desencontro das vidas.

Em Roma também há circuitos sossegados... mas é impossível não os fazer sobressaltado pelo encanto. :)

kevin disse...

Ola Ric
Written Portuguese looks so very beautiful. How i wish i could write it.

Hoy, hice un examen espanol a la universidad. fui muy dificil. Muchas verbos plucamperfecto, futuro, preterito, imperfecto, objectos indirecto/directo. Tuve escribir tres cientos palabras sobre el medio ambiente en Brasil!! Los bosques en Brasil y los rios y la clima. Ojala que haga bien.

Qu'est-que tu vas faire aujourd'hui? Est-ce le temps au Portugal beau ou froid aujourd'hui? Ici, il fait froid. 8c.
Un bonne journee mon ami.
Kev in NZ

RIC disse...

Olá Carioca!
Bem, meu caro, este não me parece que seria o lugar apropriado para «sending my message to you»... Rsrs!
O efeito do texto é mais forte porque existe um «tu» ao qual o «eu» se dirige (com alguma veemência...). Simples análise do discurso...
Muito obrigado!
Abração! :-)

RIC disse...

Olá João M.!
Dizes muito bem! Muitíssimo desencontro em doses avantajadas.
Quanto a Roma, assim é. A dúvida inicial, porém, decorria mais dos romanos e dos italianos em geral... É a sua presença que não permite o sossego...
Abraço! :-)

RIC disse...

Olá Kevin!
Maybe you will, dear friend, maybe you will... Someday, who knows?... It just depends on you...
Cosa rara en un examen de Español: escribir sobre el Brasil, el unico pais de Latino-America que no habla Español...
Aujourd'hui il me faudra beaucoup de pacience et de bonne volonté pour faire une recherche de vocabulaire en Français concernant la faune sauvage africaine... Même en Portugais j'ai mes petits problèmes, imagine ce que ça peut devenir dans une langue étrangère quelconque... On verra...
À Lisbonne il fait vraiment beau: le ciel est tout bleu, 22ºC et un tout petit peu de vent. Pour moi, c'est très bien comme ça!
Prends garde à toi, cher Kevin, à cause du froid!
Je te souhaite un très bon résultat pour ton éxamen d'Espagnol!
À la prochaine! :-)

Oz disse...

Li e pensei: também eu deixei de escrever cartas e de enviar postais das minhas viagens faz um bom tempo... tanto tempo que já nem me lembro da última vez em que tal aconteceu. Estou , no entanto, a aprender, que há coisas que não podem, não devem, ficar caladas.
Foi bom encontrar este texto no meu regresso à blogosfera.
Abraço.

RIC disse...

Olá Oz!
Curiosamente, ao ler o teu texto de hoje senti que havia alguma relação entre ambos. E embora este seja um texto ficcional, a única realidade em que ele se pode ancorar é a minha...
Abraço! :-)

Anónimo disse...

Quando comecei a ler esta ficção, lembrei-me (e não me perguntes porquê ) das Cartas de Amor - Álvaro De Campos. Associação tonta ?...Talvez...
Depois - conforme ia lendo o texto - uma certeza: Paris será um próximo e breve destino. (Ultimamente também tenho optado por «destinos da moda»).
Por fim, um «sabor» agridoce e uma vontade de ler mais, muito mais...
Obrigada!

Beijinhos! :-)

RIC disse...

Olá Carla!
Mais uma vez, agrada-me o teu estilo «solto» de comentar. Soube-me bem ler as tuas palavras: em síntese diria que ninguém tem de ensinar nada a ninguém; temos apenas de nos ouvir uns aos outros, como se despretensiosamnete conversássemos no café. O que ajuda as ideias a circular, logo, aprendemos sempre alguma coisa...
Até que acho muita piada à tua ideia: «Todas as cartas de amor são ridículas», pois são, mas quem é que não as escreve(u)?...
Quanto aos pacotes turísticos, tu é que sabes... Rsrsrs!
Não tens de quê! Talvez um dia, quem sabe, poderás ler a história parisiense de fio a pavio...
Beijinhos! :-)

Anónimo disse...

Pois, já me habituei à ideia de que são ficções, e como ficções devem ser compreendidas, mas quando, preso na sua leitura, quantas vezes penso que não é ficção, tal o detalhe, tal a força em que envolves o relacionamento dos teus personagens.
Como já nos habituaste, o teu estilo fluído, brilha de que maneira, nesta belìssima ficção, de desencontros, viagens e de recordações.
Abraço.

RIC disse...

Olá João C.!
Ainda bem, meu caro! Não pretendo enganar ninguém! Rsrs! Por isso mesmo é que há dois separadores: «Ficções» e «Biográficos». E asseguro~te de que são bem diferentes...
Muito obrigado! Estes textos só «entram» aqui porque gosto deles. Se assim não fosse, seria incapaz sequer de os considerar.
Fico contente por te ter agradado!
Um abraço! :-)

T-Bird disse...

oh oh. I feel a need to add some hunks to the metro.

RIC disse...

Hello dear Will!
Oh yes, plese be my guest! Take the photo(s) and add all you want! I most surely would like to see some hunks on the platform waiting for the next métro! Lol! Specially some of those you «tend» to add... Lol!!!
Wish you the best for the task! :-)

T-Bird disse...

hybks added for a TEE Trans Europe Express soup.

RIC disse...

... I'll have a look at that train. Passengers must be very «especial» indeed, I'm sure... Lol! And rather «busy» as well... Lol!