sábado, 13 de janeiro de 2007
I. «Foi uma vez, em Amesterdão…» (2.ª parte)
Adoravas pintar, tinhas muito talento, todos o diziam, e isso era tudo o que te importava. Mas não bastava. O gosto pela pintura, esse não terá esmorecido nem um pouco, apesar de todas as contrariedades, mas o resto, que também te convinha e muito, continuaste a ignorá‑lo. Uma teimosia com a mesma força da obstinação ou da perseverança. A visão da mítica Paris dos artistas surgiu‑te então como a oportunidade que duas vezes seguidas te fora negada. E partiste, contra tudo e contra todos, em busca do teu sonho. A cidade há muito que deixara de ser a Meca dos artistas, da boémia e dos sonhos inspirados em vidas triunfantes arrancadas a limbos de miséria e de sobrevivência rasa, depois de longos anos de custosa labuta. Mas tudo isso eram já apenas histórias longínquas, mortas e enterradas, que só ressumbravam em biografias de artistas há muito consagrados. A menos que, no teu íntimo, ainda embalasses o sonho de um futuro de sucesso à Vieira da Silva, pelo qual muito terias que batalhar...
O fascínio pelos ídolos vitoriosos tem quase sempre um efeito que todos os que se deixam ludibriar ignoram ou negam. É que por cada um que trava a batalha e vence, há pelo menos umas largas centenas de anónimos que ficam pelo caminho e não constam de nenhum relato, por muito audazes e persistentes que tenham sido no seu labor. O anonimato é sem dúvida a melhor recompensa oferecida às multidões. Inquiri porquê Paris, e não Londres ou Nova Iorque, mas não soubeste ou não quiseste explicar. Porque sim. Ias pintando com o mesmo entusiasmo, mas dias inteiros de trabalho em bares e cafés dos subúrbios deixavam‑te sem energia para atravessares noites e madrugadas em frente de um cavalete mal iluminado, de paleta em punho, a fazer experiências, a tactear caminhos e a inventar soluções. Sem dares por isso, foste ficando refém de Nanterre e do café por onde os teus dias se iam arrastando e os teus sonhos escorrendo, cada vez mais adiados. Nem o pouco Francês que sabias conseguiste melhorar. Para a tua geração, aprender línguas na escola foi miragem que se esfumou com os sucessivos avatares do ensino. A minha parece ter sido a última a escapar mais ou menos incólume aos desmandos experimentalistas de fraca valia e nenhum proveito. Não saías daquele subúrbio para lado nenhum e, quando um dia acordaste e fizeste as contas, não ias a uma exposição, não entravas num museu, nem sabias nada de futuros caminhos possíveis há quase um ano. Deixaras cair os braços e acomodaras‑te. Num fim‑de‑semana em que finalmente resolveste regressar ao circuito das artes, por feliz acaso conheceste uma pintora holandesa que te falou empolgada do meio artístico de Amesterdão e te fez encarar de frente a possibilidade de te mudares para norte.
Recuperaste o ânimo e um mês depois instalaste‑te no estúdio dela, no bairro artístico de Jordaan, próximo do Brouwersgracht, e regressaste à pintura com uma vontade renovada e redobrada que julgavas perdida. Sentias‑te no sítio e no caminho certos, já longe de subúrbios tristonhos e esquecidos, semidestruídos ou semiconstruídos, atravancados de estaleiros de obras infindas, lamaçais e restos de paisagens de apocalipse. Vivias agora numa cidade das artes e num bairro de artistas. Começaste pouco depois a trabalhar no «De oude boom» e, poucos meses mais tarde, já tinhas o teu próprio espaço, uma exígua mas acolhedora mansarda a duas ruas do estúdio da mecenática amiga. O trabalho no café nem era pesado, pelo que pudeste dedicar‑te com afinco a pesquisas e experiências para melhor te conheceres e definires. Cor e forma, linha e traço, risco e mancha, volume e textura, luz e sombra, cromatismo e claro‑escuro e tudo o mais que aquele momento sorridente te ia propiciando. Mas ainda não te compenetraras de que uma formação mais vasta e envolvente continuava a ser necessária, e faltavam‑te os contactos tão úteis com outros pintores, galeristas, coleccionadores e marchands. A amiga mecenática ia‑te ajudando, mas a coisa não estava fácil. Quando o barco por fim acostou, remataste a história com o mesmo desembaraço com que a começaras. «Como vês, nada de especial. Um caminho mais ou menos difícil, igual ao de tanta gente.»
Duas semanas mais tarde chegou a minha hora de partir, e já decidiras que também regressarias de vez comigo a Lisboa. O nosso envolvimento parecia não consentir alternativa, e a possibilidade de continuarmos juntos alegrou‑me tanto que comecei também eu a acreditar que a vida podia mesmo recomeçar aos quarenta. Não há nada mais difícil do que nos ser dada uma oportunidade. Depois de dois casos firmes e estáveis, duas relações‑de‑facto‑quase‑casamentos, as sucessivas ligações desbaratadas haviam transformado o crente inicial num espectador sem expectativas, mas o alento da esperança fazia‑me agarrar com ambas as mãos a oportunidade que parecia vir já fora de tempo. Ainda antes de partirmos, num imbecil repente racionalista de que logo me arrependi, tentei convencer‑te de que talvez não fosse fácil instalares‑te de novo em Lisboa, quase cinco anos depois de uma partida decidida pela desilusão e pelo desencanto, e que seria importante repensares atitudes e comportamentos que aparentavas querer manter inalterados, caso quisesses recomeçar a uma luz mais propícia aos teus intentos. Era apenas uma opinião minha, mas apresentei‑ta como a verdade inabalável de uma prédica. Um erro de que já me arrependera no passado, mas que uma racionalidade pressurosa e precipitada me fez repetir, uma vez mais. Quando me calei e fixei o teu olhar dardejante, percebi que era tarde demais para retroceder. Estava dito. Passou‑te pelos olhos uma névoa gelada que não quiseste esconder. Tinhas razão. Mas tão‑pouco me apercebi então de que quisesses castigar‑me por aquele meu acto tão irreflectido.
RIC
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23 comentários:
Oi, Ric.
Não comentei no outro post que você fez sobre Amsterdã (é assim que a gente chama essa cidade aqui no Brasil) porque realmente não tenho tantas informações assim sobre essa cidade.
Mas tô pra fazer uma pesquisa sobre ela mesmo, porque um dos próximos posts que eu vou fazer lá no blog tem a ver com essa cidade! Não com a cidade em si, mas com alguém que mora lá... ah, vocÊ vai ver.rsrsrs
Abraço, amigo!
Olá, querido Carioca! Aqui em Portugal também há quem ache que se deveria escrever «Amsterdam» como em Neerlandês, mas a verdade é que todos pronunciamos tal como eu escrevo e é a grafia correcta. Tal como todos dizemos «Milão» e não outra qualquer forma.
Vou ver sim! Já estou à espera!
E então a minha história?! Não gostaste dela? :-(
Não disseste nada... Insensível!
Abraço! :-)
Ficção ou realidade... pouco importa!
Um texto sentido, cheio de "pinceladas" nítidas... impressionante.
O final terá sido feliz? Infeliz?
Acho isso pouco importante. Da forma como está descrita, mesmo com um final "menos" feliz, não me importava de ter sido um dos protagonistas. É a beleza das histórias...
Abraço GRANDEEEEEE!
Olá Tongzhi, bom dia! Obrigado pela tua dúvida! É sinal que tem pernas para andar.
Quanto ao final da história, acho que enchia o blogue - olh'ó feed! - até lá chegar... Mas talvez mais alguns episódios possam dar uma ideia do percurso desta história - que começou por ser real e acabou em perfeita ficção... E não creio que agradasse ser qualquer um dos protagonistas...
Um abraço grande, grande para ti também! :-)
Quando falava em ser um dos "protagonistas", reportava-me apenas ao que está escrito, sem suposições, sem pensar nas consequências que dali pudessem acontecer.
A minha principal questão depois de ler as tuas "histórias" é:
TongZhi, tongzhi, eu sou a "razão" e estou aqui...
Desculpa lá, mas eu hoje estou particularmente lerdo - a constipação tem esse maravilhoso condão. A que «razão» te referes?
Este é um caso de homónimos que nunca mais acaba...
Quanto a protagonizar apenas o episódio de Amesterdão, também eu!... Sempre!
Vá lá.
Ric e o seu feed loiro :)
O "coração" e a "razão"...
Quem vence?
PS.
Quanto à constipação experimenta a "esmarufa"...
Sabes o que é?
Caso não saibas, deixo-te a receita em:
http://tong-zhi.blogspot.com/2005/12/esmarufa.html
Depois diz-me se resultou :)
Ah! Essa razão tem poucas hipóteses nos confrontos com o coração, já que entram sempre em campo as tais razões desconhecidas da própria razão... (Uf! E eu, não tarda nada, estou a dar um nó nos neurónios...).
Quanto à «esmarufa», mesmo sem ter ainda visto, aposto que é uma mezinha/receita milagrosa açoriana...
Veremos.
RIC:
Li duas vezes, para ver se tinha percebido bem. Eis o que se oferece dizer:
1 - Escreves extraordináriamente bem;
2 - Não há idade para a segunda, terceira, quarta ou milionésima oportunidade; Disso eu percebo, porque também julgava que estava "morto" para o mundo;
3 - Não há "razão" nas estórias de "coração". Atiramo-nos de cabeça e pronto.
4- Há sempre um fim (infelizmente), mas também nunca fica um buraco negro (felizmente)
5- O que importa mesmo é nunca perder a capacidade de amar. Isso sim é o fim transformado em buraco negro.
BOM FIM DE SEMANA
ric,
Surpreendeu-me o caminho tomado nesta segunda parte. E ainda bem. REflectes de uma forma muito viva (e ao mesmo tempo carregada de um nostálgico fatalismo) os desencontros existenciais que estão muito para lá das nossas vontades racionais. A vida faz-nos como somos. E a nossa história irrompe em múltiplas manifestações que nos condicionam.
Pelo menos foi assim que senti o teu texto. Às tantas isto é também uma dessas erupções minhas, em pouco relacionada com o teu "espírito por trás da escrita"... :)
Abraço
Olá Teddy Bear! Obrigado pelo articulado do teu comentário! Ajuda-me bastante na resposta.
1. Muitíssimo obrigado! No tocante à correcção (que é o mais controlável) sou muito exigente comigo próprio.
2. Acredito que não haja/há; à época, porém, não acreditava.
3. Umas vezes sim, outras não. Rendo-me facilmente, mas entrego-me com dificuldade, o que neste caso se aplica tanto a mim próprio como ao protagonista.
4. Este ponto exige um édito inteiro, pelo menos. Voltarei a ele.
5. Acordo perfeito e absoluto! Ainda por cima, não se sabe bem os efeitos últimos dos ditos buracos negros...
Para ti também, meu caro, um excelente fim-de-semana! :-)
Olá Maurice! Obrigado pela tua apreciação! Há de facto um fatalismo nostálgico em toda esta história, que é mais vasta e intricada que estes episódios que apresentei aqui.
O mesmo texto lido por vários é um espelho multifacetado onde convergem projecções de quem lê e donde irradiam manifestações de quem escreve. É tudo, depois, uma questão de controlar o caleidoscópio...
Um abraço para ti também! :-)
Bom fim-de-semana!
Ai malandro, que me descobriste o "feed" :) :) :)
O que é que vão pensar os teus leitores de um Imperador com receitas Açorianas????
he he he
Por acaso não é. Embora a Velha Lalá, já estivesse connosco nos Açores, esse episódio reporta-se ao "contEnente"
:)
PS. Até me sinto mal em estar com este tipo de brincadeiras, nos comentários de um post tão bom... mas tu sabes como eu sou... e tens "ar" de quem me vai desculpar :)
Não sei porque é que hás-de estar com essas luvas de pelica... Bem, és Imperador, está certo! E os meus leitores hão-de pensar que se trata de um Imperador informado e viajado, e não uma besta qualquer como o Dúbio, por exemplo... (Rsrs!)
Além de que cada comentário é independente, havendo espaço de sobra para todos os tipos. E eu sou um amante da diversidade...
A receita - que eu copiei - é uma alta bomba! Só dá mesmo para emborcar já na cama... Para dormir a seguir, entenda-se!
É também muito interessante essa tua alusão ao «contnente»: faz-me logo pensar no outro - o do arquipélago lenhoso...
Tudo está bem onde está quando é bom... :-)
A racionalidade e o amor por vezes não combinam, eu que o diga...
Quanto ao final, fica a dúvida, teria o amor vingado...
Olá Lampejo! Adoro a tua capacidade de síntese, porque é mesmo muito boa!
Se sentimos e pouco pensamos, é o que é; se pensamos e pouco sentimos, é o que é também... Logo, é um problema que se porá sempre enquanto houver seres humanos...
Tal como o protagonista, sou brutalmente racionalista. Talvez até mais do que ele...
Quanto ao final, fica a possibilidade de nos aproximarmos dele... E mais não digo. :-)
Um abraço e bom Domingo para ti!
Meu caro Ric
talvez este seja o meu dia ideal para comentar esta tua história real/ficcionada.
Tenho que te confessar que me desiludiu um pouco o desfecho, não porque seja um romântico empedernido, apenas porque gosto que a racionalidade por vezes ceda um pouco a certos impulsos, melhor será dizer "feelings", mormente quando já se não é um jovenzinho (não estou a chamar-te velho, pois tenho idade superior á tua).
Por mim falo, sem nunca deixar de ter os pés assentes na terra, é tão bom deixar que alguém goste de nós... Por isso a "nossa" canção é "You raise me up"!!!!
Um abraço forte, de amigo.
Olá João! Como compreendes, este «episódio» em duas partes integra um mosaico mais vasto. Estou, de algum modo, a avaliar reacções a uma escrita que para mim está ainda virgem, isto é, além de mim ninguém a lera ainda até agora.
Trata-se de ficção que aqui e ali toca a realidade vivida e se inspira nela. Embora talvez não o pareça, tem muito pouco de autobiográfico. Não acredito muito em diários literariamente «remaniés» (refundidos?)...
É sem dúvida uma questão dependente da vontade - deixar que alguém goste de nós... Deste-me uma pista de investigação muitíssimo interessante, João! Muito obrigado!
Um bom Domingo!
Um optimista pensa: As opções que se tomam na vida trazem benefícios
sempre acrescidos.
Um pessimista expressa: Será que não teve volta? (leia-se 'final feliz').
Um egoísta esperneia: Não nos prives de uma terceira parte.
O racional diz: Excelente!
Boa semana :-)
Olá Carla, boa noite!
Parabéns!
Rendo-me à inteligência desta tua formulação!
Que análise mais fina e que «golpe de vista»!
Muito obrigado pelo prazer intelectual que me proporcionaste!
Este Domingo acabou para mim em beleza!
Uma boa semana também para ti, cara amiga! :-)
Eh lá! Até corei, caramba!
No outro dia disseste que subi demasiado a fasquia. Lembras?
Hoje é a minha vez de dizê-lo.
Caríssimo Ric, obrigada eu por distinto elogio.
Saudações em Vénia.
Agora, sem m....ces, beijinho em ti!
:-)
Minha querida Carla! Não tens de quê! Sabes, estas minhas reacções têm ainda algo de deformação profissional: a questão do «reforço positivo»... Quando alguém leva a bom porto qualquer coisa que me agrada bastante, tenho a tendência para embandeirar em arco!... Espero que não leves a mal...
Beijinhos e, mais uma vez, obrigado! :-)
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