sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

II. Da Morte


Não tenho como evitar voltar ao assunto.

Depois de ter escrito a mensagem de despedida e de a ter traduzido para Inglês, qualquer coisa ficou por dizer. Não sei se vou encontrá‑la, ao escrever agora em Português, mas sinto que tenho de escrever.

Quando abri a caixa de correio e vi o nome – Hans Sfiligoi –, o meu primeiro pensamento foi: "O Hans voltou à blogosfera!" E fiquei contente. Não sabia que ele estava doente. Não sabia que a sua doença era tão séria. Não sabia que era terminal. Cancro pulmonar. Percebi de imediato, ao ler a causa do falecimento no e-mail enviado pelo filho, a reacção que ele tivera ao ler, num édito meu de Julho, que fumo relativamente bastante. Se é que isto é Português de gente, relativamente bastante… Ele sabia já que "relativamente bastante" tivera para ele consequências nefastas.

Tenho uma atitude muito pouco compreensível, talvez até muito estranha, no tocante a doenças. Nunca acredito, isto é, nunca me convenço de que alguém vá morrer em consequência de uma doença. Mesmo que esteja numa cama de hospital, e outros se dêem ao trabalho de me fazer ver que a situação é grave. Na infância, cheguei a pensar que os adultos choravam os mortos porque tinham medo de morrer a seguir… Choravam de medo, não de desgosto. Depressa percebi que estava enganado. Em breve, familiares e amigos começaram a partir, e eu vivi por dentro os choros dos outros demasiadas vezes.

Hoje, não há praticamente ninguém na minha vida que possa partir e com isso aumentar o meu desgosto acumulado pelas sucessivas partidas ao longo dos últimos quinze anos. Amizades e relacionamentos de anos bruscamente interrompidos. Despedidas que não aconteceram. Lutos que se atropelaram. Pensava eu que não. A prova está aí. Alguém com quem partilhava umas quantas afinidades, cujo trabalho muito apreciava, com quem trocara uns quantos longos e-mails sobre as nossas vidas, as nossas convicções, os nossos gostos e desgostos. De meados de Julho ao fim de Setembro. Sinto‑me destroçado. De novo.

Segundo o filho, o Hans faleceu em Viena no passado dia 28 de Novembro. Procurando não sei bem o quê, fui ver o que havia editado nesse mesmo dia: "Pour faire le portrait d'un oiseau", de Jacques Prévert. Creio que tem tudo que ver com ele. Mesmo sem ter ido verificar, lembrei‑me de que o Hans fazia parte do grupo dos pouquíssimos que comentavam os meus poucos éditos em Francês. Além de emérito artista plástico, era um poliglota com uma licenciatura em Eslavística e um cidadão profundamente comprometido com as justas causas da nossa época.

Querido Hans, onde quer que estejas, descansa em paz e vela por nós. O nosso encontro foi fugaz, mas deixaste, ainda assim, uma belíssima marca da tua profunda humanidade no meu coração. Bem hajas por teres estado entre nós.

RIC

8 comentários:

Anónimo disse...

Como te entendo Ric!
A morte é sempre, e sobretudo algo estranha.
A morte de alguém que conhecemos, de quem somos amigos deixa marcas profundas.
Vou falar nisso no "Amigos 4" do meu blog, pois vai ser sobre alguém que já partiu.
Este teu post, o meu futuro post, são no entanto, a certeza de que permanecem.
Foi muito bonito teres ido ver o que tinhas escrito naquele dia...
Bom fim de semana, amigão.

RIC disse...

Obrigado, João!
Sem egoísmos, eles permanecem; com os nossos humanos egoísmos, é a dor que permanece... Há quinze anos que não sei nunca de que lado estou.

Anónimo disse...

Meu bom amigo
não quero meter-me onde não sou chamado, nem sou coscuvilheiro, acredita-me...
Mas fiquei com uma idéia do que se terá passado há 15 anos.

RIC disse...

Não se trata de qualquer intromissão, João! O texto está aí, para quem o queira ler ou já o tenha lido...

Anónimo disse...

Olha, Ric, parece que eu tenho uma visão um pouco diferente da morte do que a maioria das pessoas tem.
É claro que eu me abalo quando morre alguém que eu conheço ou alguém que é importante pra mim. Mas eu não vejo a morte como uma separação absoluta entre mim e a pessoa que foi embora. O lado físico dessa pessoa foi destruído, não posso negar isso. Mas todo o resto é possível de se mater, mesmo que a pessoa já tenha morrido há 20, 30 ou 40 anos.
Depois do abalo inicial, eu sinto a pessoa tão presente quanto ela sempre teve antes. E trato ela como tal (sem esquecer, é claro, que ela não tá mais fisicamente por perto).
Talvez eu pense assim até pelo fato de já ter estudado várias religiões e, consequentemente, ter tido acesso a várias visões diferentes da morte.
Acho que o Cristianismo (e mais especificamente a Igreja Católica) sempre nos impõe uma visão da morte como algo que tem que nos deprimir, nos tirar a esperança, nos fazer lamentar pra sempre... Outras religiões têm uma visão um pouco mais suave desse assunto.
Mas eu acho que não se pode nem mesmo dizer que a morte é injusta, porque todos vamos morrer um dia, né? A única injustiça que dá pra ver aí é que alguns vão mais cedo do que outros.
Mas, mudando um pouco de assunto, toma cuidado com os cigarros, tá? Existem doenças tão fisicamente degradantes ou até mais fisicamente degradantes do que um câncer pulmonar que são causadas pelo cigarro. Então, cuidado, tá?
Um abraço, amigo. Tudo de bom!

Anónimo disse...

Constato cada vez mais que, neste meio onde os rostos 'não existem' se estabelecem laços, pequenas partilhas, correntes de solidariedade, amizades...enfim, o que cada um lhe quiser chamar...
Indubitavelmnete, 'tudo isto' começa a fazer parte dos nossos dias, das nossas vidas.

Ao Hans, o meu respeito e um até breve na terra dos reencontros.

A ti, um abraço.

Cuida-te, sff.

(Fiquei com uma dúvida. Será que também fumo 'relativamente bastante'?) :-)

RIC disse...

Querido Carioca, muito obrigado pela tua atenção! Já tinha percebido como és genuinamente amigo.
Estou evidentemente marcado pela impressão católica sobre a morte que prevalece no meu mundo cultural. Essa impressão é ainda hoje a dominante em Portugal. Emocionalmente não tenho como evitá-la. Racionalmente, consigo tomar alguma distância, mas só depois de o estado de choque passar.
Não sei mesmo se consigo fazer-me entender. Acredito que há quem tenha certamente tipo experiências de vida piores que a minha a este respeito. Não sei, nem posso sabê-lo: estamos no reino absoluto da subjectividade. Objectivamente, posso apenas dizer-te que foram muitas as mortes que tive de sofrer. Digo sofrer, porque é a separação física o que mais me afecta. A ausência do convívio, o vazio que nada preenche. É verdade, tudo muito egoísta da minha parte, mas desde os 19 anos que assim tem sido. É provavelmente o que há de mais estranho na minha vida. E sempre que alguém parte, parece que revivo tudo o que aconteceu sobretudo nos últimos 15 anos.
Não tem nada que ver com justiça ou injustiça. Posso dizer, como desabafo, que é injusto, é claro, mas não é isso que determina a minha concepção da morte. O meu desgosto é a ausência que nada preenche. As recordações consolam-me e acalmam-me. Permitem-me ultrapassar o choque e minimizar a minha «tragédia» pessoal.
Porém, e porque sei que sou egoísta, nunca poderei encarar a morte de alguém de uma forma tranquila, serena, resignada. Lamento reconhecê-lo, mas é a minha perspectiva de sobrevivente que prevalece. Ainda que me seja penoso, consigo com o tempo moderar esta minha reacção.
É sobretudo uma questão psicológica, não uma questão religiosa ou metafísica.
Um abraço amigo!

RIC disse...

Olá Carla! Tens razão. Começa - já começou - a fazer parte das nossas vidas, e da minha bem mais do que eu poderia pensar.
Quanto ao fumar, sou muito irregular: tanto posso fumar um maço em 10 horas, como estar três dias sem fumar sem grande esforço. Sei também que nunca me predispus seriamente a deixar de fumar. Se calhar, um dia destes apanho um susto... Mas também não tenciono fazer do caso um drama. O que for soará.
Muito obrigado pelo teu cuidado e atenção! Sabe bem nestes momentos.
Beijinhos e bom fim-de-semana!