quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

De Gil Vicente um pouco…


"Esta perfiguração se escreve neste primeiro livro nas obras de devação, porque a segunda e a terceira parte forão representadas na capella; mas esta primeira foi representada de camara, pera consolação da muito catholica e sancta Rainha Dona Maria, estando inferma do mal de que falleceu, na era do Senhor de 1517."

[…]
Vem um Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:


PARVO
Hou daquela!

DIABO
Quem é?

PARVO
Eu sou. É esta a naviarra nossa?

DIABO
De quem?

PARVO
Dos tolos.

DIABO
Vossa. Entrai!

PARVO
De pulo, ou de voo? Oh pesar de meu avô! Soma vim adoecer, e fui má‑hora morrer, e nela pera mi só.

DIABO
De que morreste?

PARVO
De quê? Samicas de caganeira.

DIABO
De quê?

PARVO
De caga merdeira! Má rabugem que te dê!

DIABO
Entra, e põe aqui o pé!

PARVO
Hou lá! Não tombe o zambuco!

DIABO
Entra, tolaço eunuco, que se nos vai a maré!

PARVO
Aguardai, aguardai, hou lá! E onde havemos nós d'ir ter?

DIABO
Ao porto de Lucifer.

PARVO
Ha-á-a…

DIABO
Ó Inferno. Entra cá!

PARVO
Ó Inferno?… Eramá… Hiu! Hiu! Barca do cornudo, beiçudo, beiçudo! Rachador d'Alverca, huhá! Sapateiro da Landosa! Antrecosto de carrapato! Hiu! Hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa! Tua mulher é tinhosa e há-de parir um sapo chantado no guardanapo! Neto de cagarrinhosa!
Furta cebolas! Hiu! Hiu! Excomungado nas igrejas! Burrela, cornudo sejas! Toma o pão que te caiu! A mulher que te fugiu pera a Ilha da Madeira! Ratinho da Giesteira! Cornudo atá mangueira! Toma o pão que te caiu! O demo que te pariu!
Hiu! Hiu! Lanço-te uma pulha! De pica nàquela! Hiu! Hiu! Caga na vela! Cabeça de grulha! Perna de cigarra velha, caganita de coelha, rabo de forno de telha, pelourinho da Pampulha! Mija n'agulha, mija n'agulha!
[…]

in "Auto da Barca do Inferno"

"… Abençoados os pobres de espírito…"

6 comentários:

Anónimo disse...

Que delícia, ler um pouquinho de Gil Vicente!
Grande, grande entre os maiores, é realmente incontornável.
Não sei porquê, sempre que relembro "mestre Gil", vem-me à memória a sublime interpretação de Maria do Céu Guerra na "Maria Parda".
Obrigado, "mestre" Ric.

RIC disse...

Por quem sois, meu caro João!...
Tens toda a razão quanto a Maria do Céu Guerra - grande mulher, grande actriz.
Eu recordo-me de estar a ver TV e, pela primeira vez na minha vida, assistir à Barca do Inferno. Logo a minha mãe disse: «Não vai haver sossego este serão! Ele vai pôr-se para ali a rir e só pára quando for para a cama...»
E assim foi... Até fiquei rouco!
!Já mudei para a versão beta. Um dia destes deixava de poder comentar fosse quem fosse.)
Um abraço amigo!

Anónimo disse...

Hum!
Ele é considerado o maior teatrólogo da História de Portugal, né?
Acho que podemos dizer que ele foi pra Língua Portuguesa a mesma coisa que o William Shakespeare foi pra Língua Inglesa!
Até mais! Abraço!

RIC disse...

Olá Carioca! Exactamente! E eu continuo a adorar os autos dele!
A crítica social é espantosa e a linguagem é única!
Obrigado pela comparação!
Abraço!

Anónimo disse...

Quando (re)leio Gil Vicente, recordo-me sempre dos meus tempos
de «pita». São momentos deliciosos, sem dúvida. Obrigada, Ric!

Agora, ao som de «Live In Tokio - Piano Solo» de BRAD MEHLDAU
e quase petrificada(brrr! que frio!),desejo-te uma boa noite.

Beijinhos.

RIC disse...

Boa noite, Carla! É curioso que também comigo se passa algo de semelhante: li e estudei uma peça dele pela primeira vez teria os meus 14 ou 15 anos, mas graças à TV (haja alguma coisa de bom que possa ser dita!) conheci-o bem mais cedo!
Pois é, minha cara, o friozinho está aí! Cuida-te! E boa audição!
Beijinhos! :-)