terça-feira, 21 de novembro de 2006

I. Da Língua Portuguesa (1)


"Ein jeder, weil er spricht, glaubt, auch über die Sprache sprechen zu können."

Qualquer um, porque fala, julga que também sabe falar sobre a língua.

Johann Wolfgang von Goethe

I. Pois julga. Mas engana‑se redondamente. E nos dias de hoje, ainda mais.
Ter formação em área científica específica e dominar com competência a língua materna nada tem de extraordinário. É a obrigação de todo aquele que é trabalhador intelectual e que, ao mesmo tempo, é intelectualmente honesto. Se não há pensamento sem linguagem, como expor cabalmente o pensamento sem usar a língua com propriedade?

II. Inicio hoje uma série de éditos sobre questões de proveniência vária atinentes à língua portuguesa. Não pretendo seguir o caminho da mera opinião (δόξα = doxa), mas antes colocar‑me sob o signo do conhecimento fundamentado.
A língua portuguesa tem‑me merecido sempre a máxima atenção e respeito; é ela que em grande medida é a minha Pátria.
Não pretendo corrigir nada nem ninguém, pelo menos não directamente; cada um é responsável pelos seus actos, inclusive pelo modo como trata a língua através da qual viu e entendeu o mundo pela primeira vez.

III. Desde sempre quezílias e querelas, polémicas e picardias têm assinalado as relações enviesadas entre as sacrossantas Letras e Ciências. E, diga‑se em abono da verdade, bem mais entre nós que alhures, como se de uma idiossincrasia muito nossa, muito portuguesa se tratasse, a pedir que a desmistifiquem de vez.
Os actuais saberes específicos das áreas ditas de Letras, ou Humanidades, são ainda encarados por muitos (quero acreditar que por mero desconhecimento), sobretudo das áreas ditas de Ciências, como diletantismos de acesso e domínio fáceis por parte de qualquer um, i.e., como curiosidades acessórias e secundárias quando comparadas com a infinda gravidade e dignidade das matérias "efectivamente" científicas.
Quem está de fora e por fora vê o que pode e como pode.

IV. Só em Português se procura distinguir entre "crítica positiva" e "crítica negativa". Conceptualmente, tal distinção, além de bizantina, não faz qualquer sentido. Ainda que não seja uma questão de natureza estritamente linguística, ela reflecte‑se no uso que fazemos da língua: conquanto muitos não o admitam facilmente, "crítica negativa" é, pura e simplesmente, maledicência. Crítica só pode haver uma, a positiva, pois que é sua meta elevar a qualidade do seu objecto.

V. Discorrer ex cathedra sobre a língua e seus usos também tem sido sempre coisa muito comum entre nós, mesmo que para tal não se tenha qualquer formação específica, o que entre nós parece interessar ainda menos. Atente‑se em alguma programação televisiva, a título de exemplo. Como disse Goethe, qualquer um se acha habilitado para tal, não estando. E nos dias de hoje, ainda menos. Não basta ter essa fantasia nebulosa chamada à colação a toda a hora por muitos na mira de se defenderem de eventuais "argoladas": a muito prezada "sensibilidade literária". Que nexo é que se pode estabelecer entre uma intuição sensível e um saber explícito?

VI. Fala‑se da língua portuguesa muito mais do coração (de cor, portanto) do que da cabeça. Mesmo entidades com responsabilidades são capazes de apresentar opiniões sobre usos e abusos com base tão‑só no que lhes "soa melhor". E assim prescrevem que um "de" seja aqui omitido, mas ali seja obrigatório; que um "a" em certa locução é galicismo, pelo que deve ser substituído por um "que" que, recomenda por sua vez a estilística, deve ser evitado a todo o custo por enxamear a língua com as suas 18 ou 19 diferentes acepções… E daqui não passaríamos, a desfiar um rosário infindo de exemplos semelhantes. E chegando à conclusão de que onde ainda não houver investigação científica qualitativa e quantitativamente suficientes em termos de explicação de fenómenos que se verificam no Português, a porta permanecerá aberta a quem queira continuar a falar de cor.

VII. "Chama‑se António" e
"Não se chama António"
são ambas frases correctas do Português, e isto será admitido pela maioria, espero. Porém, explicar cabalmente por que razão o "se" se move na passagem da afirmativa para a negativa não será tarefa fácil para essa maioria. "É assim, porque assim é que está certo." Pois é. E 2+2=4 também, porque assim é que está certo…

VIII. Vem algum mal ao Português se, a par de "critiqueiro" e "criticastro", por exemplo, houver também "filópsogo"? Em todas as épocas se criaram eruditismos, e não há qualquer razão plausível para se prescindir agora do manancial lexicográfico greco‑latino. Até porque é este mesmo manancial que é hoje a base comum a um número considerável de línguas de cultura do Ocidente, a começar pelo Inglês.

Estas primeiras observações pretendem‑se exactamente assim – avulsas, dispersas, incompletas. A intenção é a de provocar a reflexão, com vista a um saber escorado e não apenas a uma mera opinião.
Voltarei a alguns destes assuntos, por agora apenas aflorados.

RIC

4 comentários:

Anónimo disse...

Aqui no Brasil fala-se muito mal o português. E não estou falando das diferenças entre as variantes portuguesas e brasileiras (no plural, já que, por exemplo, só no Brasil existe uma ENORME variedade nos falares). Também não estou falando da linguagem usada na internet, que é bastante peculiar. Muito menos me refiro à linguagem informal, até porque é a que uso aqui neste momento! Hehehehehe

As pessoas falam mal e escrevem mal. Muitos defendem que, se a comunicação foi estabelecida, não há problemas. Eu tenho cá minhas dúvidas quanto a isso. O problema é que este tipo de pensamento acaba mascarando um péssimo sistema educacional, o que envolve também a formação dos professores e a estruturação das aulas de Língua Portuguesa, que, muitíssimas vezes, são BASTANTE desinteressantes.

Abração!
=)

RIC disse...

Olá Lê! Como professor de Português que continuo a ser, não podia estar mais de acordo contigo. O argumento «comunicacional» tem vindo a corroer o sistema educativo em muitos aspectos, nomeadamente naqueles que muito bem referes.
Em termos pessoais, cansei-me de tanta frustração no ensino; hoje, trabalho na área do Português como língua estrangeira e estou muito mais satisfeito.
Quanto às aulas de Português no ensino tradicional, é preciso (como em tudo, aliás) muito gosto e muita dedicação para conseguir escapar à rotina desinteressante de que todos nós, creio, tivemos experiência - melhor ou pior, mais breve ou mais longa.
Se há alguma coisa de que eu seja «fanático» é de ler o que é bem escrito e de escrever com o máximo de correcção e de elegância que me é possível!
Muito obrigado! Tudo de bom!
Um abração para ti!

André disse...

Olá ric,
peço-te que me desculpes esta pequena ausência, mas tive uma semana cheia de trabalho, mal tive tempo para dormir, enfim...
Concordo absolutamente com tudo o que escreveste e espero ansiosamente os teus próximos éditos sobre o assunto.
Gostava de saber a tua opinião sobre as TLEBS. Eu, daquilo que tenho lido e ouvido a respeito, acho tudo aquilo um perfeito disparate, mas tu saberás muitíssimo melhor do que eu.
Disseste há algum tempo, quando eu escrevi um post sobre uns textos do Félix, que mais tarde escreverias algo sobre o assunto, também sobre isso gostava de te "ouvir".
Abraços

RIC disse...

Olá André! Não tens de te desculpar de nada. Para todos os efeitos, trabalho é trabalho e conhaque é conhaque...
Acompanhei essa questão da terminologia inicialmente e creio que tenho alguma documentação relacionada aqui no computador. Soube agora do abaixo-assinado (ou documento de protesto...) e, para ser sincero, de momento reajo tal como tu: acho tudo isto um perfeito disparate. Prometo ocupar-me do assunto, bem como dos 2 textos do Félix. Em boa verdade, este édito começou por aí, mas como então eu andava demasiado irritadiço, achei por bem deixar repousar o assunto. Por isso me refiro aqui às quezílias e polémicas, sem entrar em pormenores. Para estas questões é preciso cabeça muito fria e argumentos muito sólidos. Senão, é discussão barata.
Como vês, não está esquecido.
Muito obrigado!
Felicidades!