quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Analisando o incidente a bordo…

(Conclusão do texto ficcional de quarta-feira, 12 de Setembro)

«Não me tenho em conta de misantropo, mas há ocasiões em que me saberia muito bem ser anacoreta. Quem me dera estar alhures. Discorrendo sobre o incidente, evito voltar a pensamentos ainda mais perturbadores do que a sombria perspectiva de estar a bordo de um avião que poderá despenhar-se a qualquer instante, apenas porque alguém se considera mais esperto, com mais direitos e acima da lei.

Admito sem rebuços que não tenho nem mais nem menos qualidades que quaisquer outros. Afinal, é até com alguma esperteza saloia que vou analisando a peripécia, em silêncio e ao pormenor, a partir do abrigo do meu lugar, iludindo-me que assim escapo mais facilmente às inquietações que a aproximação a Lisboa torna cada vez mais ingentes. Julgo que, agindo assim, não me misturo a uma discussão de matarroanos e pacóvios, que é o que penso deles. Mas, com esta atitude, apenas desvio o olhar de mim para os outros…

Depois, há alguma inveja mesquinha em não conseguir, como os outros, ocupar o espírito com elucubrações sobre se também a mim me assistiria o direito de utilizar o telemóvel. Enquanto eles se vão dividindo em grupos e encarniçando em acirrados falatórios, eu fico em silêncio no meu lugar, não deixando por isso de observar, esmiuçar e criticar tudo o que se vai passando, por alguma coscuvilhice calada mas não menos lampeira, feita de olhares furtivos. A diferença é apenas formal. Não poupando nas censuras, é com alguma maledicência que lhes vou traçando os retratos com contornos afiados. Mas não tenho a coragem, por alguma cobardia assarapantada, de me levantar do lugar onde ainda me sinto protegido e de lhes dizer cara a cara o que penso.

Há também alguma sujeição rasteira em aceitar sem reacção a ínvia vontade de uma maioria, que pode causar uma catástrofe, por receio de afrontá-la, quando a minha obrigação seria insurgir-me contra o calamitoso erro que pode tornar-se criminoso. E há ainda alguma acomodação e indolência a que me parecem condenar o fatalismo, o azar, a pouca sorte de estar a bordo deste avião, caso a normalidade não seja retomada. Embora seja vítima potencial, não intervenho por considerar que não é responsabilidade minha contribuir para a solução. Entrego o caso a outrem, a quem à partida reconheço autoridade para resolver o problema.

Os deméritos, que prontamente aponto aos outros, são também afinal os meus defeitos. Não sou melhor nem pior, nem fico por isso mais descansado. «Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades!» Almada Negreiros, «poeta de Orpheu, futurista e tudo», conhecer-se-ia muito bem a si próprio, mas sem dúvida conhecia-nos a todos nós muitíssimo melhor. «Mestre quem?! Não faço ideia, mas acho que é capaz de ser uma dessas celebridades que andam por aí nas revistas, não? Ou um desses que fazem telenovelas…»

Desprezamos olimpicamente os bens do espírito, temos almas cada vez mais pequenas e, por teimarmos na pequenez, invejamos qualquer sinal de grandeza maior. Assim, o nivelamento por baixo é a solução ideal, perfeita, e é o que sistematicamente acontece. Propensos ao imediato e ao pronto, livramo-nos depressa demais de tudo o que requeira esforço de concentração e de reflexão, o que, do alto da nossa suprema sabedoria, achamos desnecessário. Porém, o caso muda de figura se acaso, pública e oficialmente, somos chamados a pronunciar-nos. Então, é o que há de pior no estilo pseudo-académico que revelamos, inviabilizamos qualquer simpatia ou empatia com o assunto que, obviamente, dominamos na perfeição como ninguém e tornamos insuportável a simples audição ou leitura. E nisto, não temos mudado nem damos sinais de querer mudar. Definitivamente, pensar, discernir, discorrer não serão as nossas mais inatas vocações, as nossas melhores qualidades. Sob vários aspectos, revelam-se até defeitos inextirpáveis. Por alguma razão, filosofar em Português é mentira.

Há tempos dizia um entendido em representações geométricas, que um segmento de recta se ajusta lindamente a dar forma às particularidades do carácter nacional. «Parte delas num extremo, outra parte no outro, nada entre eles e tudo em desequilíbrio.» É decerto o que peritos em análise lógica já haviam transposto, com a célebre disjunção exclusiva, para «ou oito ou oitenta». E o povo, na sua infinita sabedoria superior a abstracções e feita da empírica experiência, formulou o mesmo na eloquente imagem disfemística «ou cu à mostra ou calções de veludo», não descurando a imprescindível alternativa absoluta. O expressivo plebeísmo apenas enfatiza o pitoresco concreto e realista.»

(Sem pretender dar quaisquer pistas de leitura/interpretação, importa-me registar que esta segunda parte foi construída em «contraponto» à primeira, um pouco como um possível exercício de auto-ironia. Não sei se o narrador o terá plenamente conseguido. As vossas reacções o dirão…)

RIC

6 comentários:

lampejo disse...

Apenas para deixar um abraço!

RIC disse...

Olá meu caro Lampejo!
Muito obrigado pela atenção! Espero que esteja tudo a correr-te de feição!
Abraço! :-)

Shadow disse...

Divinal!
Embora esta ficção retrate uma triste realidade que é a falta de respeito e civismo, consegui rir.
A lembrança das palavras de alguém entendido em representações geométricas , está soberba. Palavras sábias e que fazem pensar.
Parabéns!

Beijinho :-)

(Depois de tantas horas de estudo, «prova» superada com êxito! Yupiii! ) :-)

RIC disse...

Olá querida Susana!
Sério?! Maravilha!!! Isto quem usa a cabeça para pensar chega sempre lá! Vinte valores! Ainda bem que te esmeraste! Fico muito feliz por ti! :-)

Por essa do riso não esperava eu... Ou se calhar... Rsrsrs! A auto-ironia também é isso mesmo: dizer coisas muito sérias e, assim, provocar o próprio riso.
Quanto à geometria, tive de me certificar de algumas coisinhas antes que metesse o pé na argola... Rsrsrs! Mas parece que saiu bem!
Ainda bem que gostaste! E divinal é o teu êxito! Muito bem!
Obrigado!
Um beijinho para ti também! :-)

Catatau disse...

Bonito! Pim.
E gosto muito desse auto-retrato de Almada - 1, Negreiros - 0, rsrsrsrsrs.

RIC disse...

Olá João!
Gosto do teu comentário ao estilo futurista! Rsrsrs! «Morra o Dantas!»...
A ideia do auto-retrato é também um pouco a de um auto-retrato nosso. Mas parece que poucos terão achado alguma piada... Nem sempre é agradável vermo-nos ao espelho...
Um abraço! :-)