sexta-feira, 10 de agosto de 2007

«La Madeleine»...

«De montra em montra, fui andando pelos boulevards des Capucines e de la Madeleine e, quando olhei em volta, estava junto à Igreja de Santa Maria Madalena, ou apenas La Madeleine, do lado do mercado de flores, onde o ar saturado de perfumes nunca se dissipa.


Nunca me dispusera a entrar naquele espaço, que ao primeiro olhar logo evoca a época em que o templo de Eboracum, dito de Diana, estava inteiro, o Pártenon ateniense era ainda habitado pelas virgens ou o domus quadratus Nemausi – a Maison Carrée de Nîmes – era lar do panteão romano. Nada no edifício evoca uma igreja consagrada ao culto católico. Como não sabia quase nada sobre aquele epígono clássico, era o momento. Entrei quando a missa da tarde estava prestes a terminar, e a primeira surpresa veio da magnífica iluminação e do tom da luz que se desprendia das paredes e inundava toda a nave única. Sobre uma pequena mesa pareceu-me ver alguns desdobráveis e não me enganei.

Iniciada no século XVIII, só foi consagrada quase cem anos depois, tendo o edifício em construção servido vários propósitos, alguns nada apropriados e muito menos católicos, à medida que se sucediam os regimes de cada-cor-seu-paladar. Pelas três cúpulas penetrava uma réstia de luz que se misturava com a das muitas velas e criava um raro efeito de escorrência, como se uma finíssima película de água, translúcida e silenciosa, se soltasse do tecto, escoasse paredes abaixo e derramasse pelo chão. Ao fundo, o altar-mor e a Ascensão de Santa Maria Madalena surpreendem pela decoração invulgarmente despojada e pelo efeito de perspectiva das muitas rectas que parecem todas confluir naquele ponto. A harmonia do conjunto sugere uma grande tranquilidade, e sentei-me a meio da nave, absorto por toda aquela beleza.


Os cinco minutos seguintes arrancaram-me ao mundo, levaram-me para bem longe, para o único paraíso que posso conceber e, por um átimo sem tempo, terei vislumbrado a eterna glória. Vindo não sei donde, ouvia-se o «Laudate Dominum» das Vesperæ Solennes de Confessore, sublime melodia que Wolfgang Amadeus Mozart só pode ter trazido de uma das muitas viagens oníricas em que contemplou directamente o Belo, face a face, a menos de um dedo de distância da divina perfeição, numa fracção de segundo do relógio do Universo, que deve ser toda a eternidade e separa Deus do Homem. Torna-se assim profético o seu nome de baptismo: Johannes Chrisostomos, o da «boca de ouro». Não será à face da Terra que toda esta beleza se poderá revelar a um humano, a menos que o seu reino não seja deste mundo. E o reino de Mozart não foi deste mundo. A peça impõe, da forma mais imediata e definitiva, a reconciliação com a vida e a ânsia de transcendência.

A melodia derramou-se cristalina como a luz perene de uma fonte imarcescível, percorreu-me num frémito de arrebatamento e, quando se extinguiu, deixou o vazio absoluto em seu lugar. Tanto poderiam ter decorrido cinco minutos como cinco milénios. A eternidade tocara-me.

Deve redobrar todas as forças ter uma fé inquebrantável e fervorosa – aquela que move montanhas, aparta mares e reverdece desertos. Pois é, «non abbiate paura»… Quando dali saí, era noite cerrada e senti-me levado a agradecer aquele final inesperado e tão reconfortante do primeiro dia do ano. A quem agradecia não sei nem procurei saber. Talvez a Deus. Há experiências que só são plenas se for evitada qualquer tentação de procurar explicá-las. É só nesse mistério que parecem alcançar toda a plenitude.

Deitei-me com a serenidade de continuar a escutar o «Laudate Dominum» cantado por um anjo que se tivesse dignado vir embalar e velar pelo meu sono e inspirar-me sonhos sem tempo nem lugar. Só posso ter adormecido com um angelical sorriso nos lábios e a inocência de um recém-nascido aninhada na alma.»

RIC

8 comentários:

Shadow disse...

Estimado Ric,

Welcome! :-)
Fico feliz com o teu regresso!

Quanto ao «post», pois... Quando abri a página da tua babilónia e vi o título, pensei que fosse outro tipo de édito...mas não. Antes assim! É mais uma magnífica ficção. Obrigada, por esta «viagem» tão rica em pormenores e com o poder da serenidade.

Bom fim-de-semana!
Beijinhos! :-)

RIC disse...

Olá Carla!
... E eu, muito agradecido!
Eu também acho, minha cara, antes assim! Sem dúvida! (Como sabes, há muito já que não dou nem um tostão para peditórios desses. Não alimento fogos que ninguém sabe por que razão ardem...)
Apesar de «racionalista romântico», há momentos em que o místico em mim parece levar a melhor...
Bom fim-de-semana para ti também!
Um beijinho! :-)

João Roque disse...

Caro Ric
já passei várias vezes pela Madeleine, já fotografei a sua bela fachada, mas nunca lá entrei; agora depos da tua descrição será ponto de visita obrigatório em futura ida a Paris.
Mas tenho que te felicitar e muito, meu amigo, pela maravilhosa conjugação do texto com a música, pois fazes-nos quase sentir lá dentro a escutar esse magnífico trecho de Mozart.
Obrigado.
Abraço.

eskimo friend disse...

ficção ou não, tb gostei da viagem. :)

RIC disse...

Olá João C.!
Por este andar, um dia destes os blogues transformam-se em produções cinematográficas e em vez de lermos o que os bloguistas seleccionam assistimos a curtas-metragens do quotidiano... Já começa a ser possível!...
Ainda bem que gostaste e não tens de quê! O prazer destas coisas é sempre meu!
Um abraço! :-)

RIC disse...

Olá, meu caro Eskimo Friend!
Delícia! Apareceste e de noite! O que o Verão faz!
Digamos que a visita em si à Madeleine não é ficção, naturalmente. Mas o arranjo do «cenário» faz parte de um quadro mais vasto, este sim, ficcional.
Obrigado pela visita! Um abraço!
:-)

lampejo disse...

Por vezes de onde menos se espera, vêem grandes surpresas...

RIC disse...

Olá Lampejo!
E ainda bem que assim é! Já há tanta coisa previsível...
Abraço! :-)