(1.ª parte: terça-feira passada)
«Terminados os postais passei à leitura dos jornais apenas para lamentar desanimado que o mundo piora cada dia a olhos vistos. Começava já a sentir-me desmoralizado quando reparei numa notícia que, afastada das primeiras páginas, decerto não produziria o efeito pretendido. Mas, se calhar, era eu que me enganava. Estranhei o tratamento dado a uma dessas muitas mensagens pseudoproféticas, quase sempre ridículas e muito desinteressantes, que se lêem no início de todos os anos, com previsões sobre o que de bom e de mau nos reservam os próximos trezentos e sessenta e cinco dias. Se o texto aparecia escondido num canto discreto de uma página interior, o título era suficientemente intrigante para atrair olhares curiosos. «Profecia escatológica dá prisão» encabeçava um texto lacónico que, não obstante as dimensões, tinha muito que contar.
Algures num Estado semidesértico do abissal interior ocidental dos Estados Unidos da América do Norte, um indivíduo de seu nome Josh W. Bull, que desde os bancos da escola carregava a alcunha de Rato Mickey por causa de umas grotescas orelhas de abano, anunciara que o país se extinguiria na madrugada de 4 de Setembro de 2053. Afinal, a profecia cingia-se a um eventual fim político de uma parte do continente, perdendo-se assim uma substancial parcela da dita dimensão escatológica. E o nome do indivíduo ou era falso, ou suportava uma tremenda crueldade do destino, como todos aqueles que carregam consigo o anátema de terem recebido o nome de Benedict. Mas o mais espantoso vinha a seguir. A ignorância mal dissimulada, a imbecilidade generalizada, o provincianismo embandeirado e a arrogância desmesurada de um povo ensimesmado seriam as causas da miséria e da ruína da nação. E o meu interesse ia aumentando. Arrastam-se em vidas patéticas, dizia, milhões de morónicos alarves e lorpas, sempre de tacha arreganhada, orgulhosos de um alheamento inaudito de tudo e de todos à face da Terra, tresandando ao álcool que emborcam a eito e sempre prontos a bradar aos quatro ventos, de preferência diante de câmaras de cadeias nacionais de televisão, que têm muito orgulho em tudo aquilo de que muito se gabam os falhados que se julgam vencedores, só porque outro falhado qualquer jura que «és sim senhor, és o maior, eu seja ceguinho, goddammit!».
Com todas as letras, comparava o país ao III Reich, o doutrinador do Heimatland über alles – pois é, acima de tudo. Porque o histerismo incendiário da demagogia patrioteira substitui agora a nation de sempre por homeland ou God's own country. Porque são flagrantes as manipulações dos resultados eleitorais. Porque o Projecto 112 ocupou muitos mais doutores Mengele norte-americanos do que os que se puseram ao serviço da morte em Auschwitz-Birkenau, Buchenwald, Sachsenhausen, Treblinka, Chełmno, Mauthausen, Ravensbrück, Teresienstadt, Sobibór, Majdanek, Belżec, Dachau, Bergen-Belsen. Esta é a toponímia espectral da nossa culpa, aumentada pela miserável existência de todos os Antons Ahlers, delatores e denunciantes de todas as Annes Frank exterminadas pelo ódio feito gás. A chamada comunidade internacional ter-se-ia apressado a condenar todos os alemães sem excepção, caso tivessem sido médicos nazis os mandantes dessas barbaridades, acrescentou. Mas como foram norte-americanos, nem sequer houve atrocidades, e o dito projecto foi ciência pura. A culpa de uns é a glória de outros. No país da investigação científica pura e dura, com todos os meios topo de gama fornecidos por todas as tecnologias de ponta, o criacionismo, prosseguiu, é a aberração anacrónica que só a mais descabelada imaginação desencantaria nos mais recônditos refegos das circunvoluções cerebrais. É o guião de leitura mais fantasioso, o mais infantil e o mais simplório de sempre.
Mas então e se…? Alguém apanhado na teia daquelas alusões interrompeu-o e verbalizou então a pergunta desnecessária. Se ele se referia à Alemanha ou ao Iraque. Acenderam-se os ânimos, e Josh W. Bull limitou-se a redarguir que em Guantánamo e Abu Graíbe se encontravam os réus mais desprotegidos e mais indefesos do mundo e que a Constituição se tornara letra morta. Tudo o que não seja a favor dos nossos interesses é terrorismo. Num arroubo de inteligência, o mesmo alguém acusou-o então de defender a al-Qaeda. E as mesmas imagens a fogo, negro e cinza de torres pulverizadas, aviões esmagados e inocentes chacinados foram mais uma vez projectadas em ecrã gigante, na sala onde decorria a conferência de imprensa. Exibidas assim, a torto e a direito e quase sempre a despropósito, disse Josh W. Bull, estas imagens, que deveriam permanecer símbolos da demência que exibem, desgarram-se da realidade, são rebaixadas ao nível da mais chã banalidade e transformadas em poderosa propaganda, como se devessem apenas servir de pano de fundo a mais uma campanha publicitária qualquer, vista hoje e amanhã logo esquecida.
Como se ninguém soubesse que a imagem, tal como a palavra, não se limita a evocar. Uma só vez que a imagem seja vista ou a palavra ouvida é quanto basta para que se liberte um poder desmesurado. Elas invocam. O que é virtual, espectral, irreal, materializa-se diante de nós e torna-se parte da vida. Ninguém recorrerá à superstição para tentar perceber que os males muitas vezes mostrados ou ditos se reificam e misturam na massa concreta do quotidiano. E não é por magia nenhuma ou por algum efeito parapsicológico inexplicável. Quem pensa proceder a um esconjuro, a um exorcismo, está em vez disso a banalizar uma maldição que tarde ou cedo o atingirá. É que há muito tempo, mesmo sem ciência, se sabe que o abismo chama o abismo. «É dever irrefutável da humanidade pôr fim a toda e qualquer guerra, ou qualquer guerra porá fim à humanidade.» Só há guerras por haver sempre uns quantos mentecaptos com poder, prontos e desejosos de declará-las, mas raramente de fazê-las. Isto sabia-o Kennedy muito bem. E o que é que soubemos fazer melhor ainda, por exemplo, aos ameríndios, perguntou. Primeiro, chamámos-lhes selvagens e roubámos-lhes as terras. Depois, encharcámo-los em álcool e chamámos-lhes bêbedos. Por fim, magnanimamente, permitimos-lhes fazer uns quantos negócios insignificantes, para depois ainda os obrigarmos a esmolar o respectivo produto. Agora, para que possam preservar as suas «riquíssimas raízes e tradições», confinámo-los a reservas de miséria. Teremos entretanto aprendido alguma coisa? As lições sucederam-se ao longo do século XX. Primeiro o Japão, a seguir a Coreia, depois o Vietname, mais tarde o Afeganistão e agora o Iraque. Será que apesar de tudo isto haveremos ainda de teimar que somos senhores do mundo?
Por toda esta caracterização demolidora do mainstream e do estado da nação, o indivíduo fora detido, e o Ministério Público tencionava acusá-lo de traição, actividades antiamericanas e incitamento ao terrorismo. Fiquei a cogitar, incrédulo, no que é que seria considerado mais grave por mais esta prodigiosa bizarria de que é relapso aquele sistema judicial, e quase delirei com o tom anedótico daquela história. Mas, de súbito, um calafrio percorreu-me todo o corpo e causou-me um desagradável mal-estar. É que o McCarthy não foi anedota nenhuma. Nem sequer anedótico. Interrogado ainda sobre a origem daquela data derradeira, como se isso pudesse indiciar alguma teia conspirativa mais obscura, Josh W. Bull recusou dar pormenores e limitou-se a afirmar que, desde tempos imemoriais, a aritmética faz parte do quotidiano da humanidade e que todos os impérios, do bem e do mal, haviam tido um início e um fim. «You put two and two together and add it up.» Que o intrigava ainda a liberdade tão fartamente apregoada que via ir-se abrasando a fogo lento numa demencial pirolatria colectiva. Que o irritava a suprema idiotice de que tudo na vida tem de ser supremamente «fun, fun, fun! Let's just all get high and have some fun». Para divertir, ter piada, ser folgazão, hilariante ou histriónico, mais nada. Porque senão, é a pior das chatices, uma fuckin' seca desgraçada. Que era a esta grotesca tragicomédia que estava reduzida a busca da felicidade proclamada por uma Declaração de Independência repleta de boas intenções. Analisem isto, e assim rematou as declarações, enquanto era levado pelas autoridades. Afinal, aquele Rato Mickey, ao invés de outros famigerados, sabia e pensava mais e melhor do que todas as escatologias fariam supor. Aquela notícia era uma pérola e uma boutade também, apesar da ridícula seriedade dada à encenação hollywoodesca. Fiquei ainda algum tempo atónito com a perversa comicidade – ou a cómica perversidade – daquela detenção. Ainda agora não consigo discernir o que será mais importante, se o perverso, se o cómico. Até o título da notícia me parecia já, ao mesmo tempo, grotescamente cómico e perverso...
Dobrei o jornal, guardei-o e ao pagar perguntei ao garçon onde é que encontraria por perto um marco de correio. Se descesse os Campos Elísios, havia um à entrada da Praça da Concórdia, disse-me. A passo lento caminhei em direcção ao belo obelisco cravejado de magníficas jóias hieroglíficas que, à minha frente, parecia ir saindo do chão e subindo no ar. Junto ao marco de correio despedi-me dos postais, que chegariam depois de mim. Paciência. Foi sem intenção que me esqueci deles no saco. Que me possam desculpar parentes e amigos. Fiquei por momentos a cismar em que mensagens, saudações, relatos, conteria aquele esguio monólito de granito rosa com três mil e duzentos anos, trazido das margens do Nilo há quase duzentos. De súbito, ocorreu-me a incómoda questão se não estaria bem melhor no seu ambiente originário. Em Luxor, a antiquíssima Tebas. Do centro daquela praça, a perspectiva é das mais admiráveis do mundo ou, pelo menos, das mais impressionantes. Da fachada da Madeleine, o olhar desce a sumptuosa rue Royale, cruza a praça a todo o comprimento, atravessa a ponte da Concórdia e projecta-se na fachada também clássica do Palais Bourbon, a Assembleia Nacional. E este olhar relanceado abarca mais um farto trecho de património mundial da humanidade. E de mundo.»
A todos, desejo um excelente domingo!
13 comentários:
I love les Champs Elysees/J'adore les Champs Elysees.
Est-ce que tu visites les sites des Champs Elysees Ric? L'oblisque est situe dans la rue pres de Musee Louvre non? Paris est tres tres tres jolie. Beaucoup de jardins et les batiments sont tres interessants. Mon monument favourite dans les Champs Elysees est l'arc de triomphe. Il est tres grande et magnifique.
Je voudrais mes vacances a Paris mais il est trop cher voyager par avion maintenant mais je vais voyager a Paris je ne connais pas quand je vais aller.
Un bon journee Ric
Kev en Nouvelle Zelande
Bonjour Kevin!
Je suis très content que tu aies écrit en Français! Merci beaucoup!
Ah oui, c'est le plus beau paysage de Paris, les Champs Élysées, sans doute! Si j'ai compris ta question, oui, je connais très bien cet endroit de Paris car je l'ai visité plusieurs fois déjà. Le Louvre est situé (hors de la photo) vers la droite, après le Jardin des Tuileries.
L'Arc de Triomphe est très imposant, et la Place de la Concorde, où est situé l'Obélisque, est merveilleuse: il y a de très beaux bâtiments tout autour - un vrai musée en plein air!
Je te comprends très bien, cher Kevin: il faut toujours revenir à Paris - une, deux, trois, quatre fois, toutes les fois possibles, même si les voles sont très chers... Je souhaite que tu y puisses aller vraiment bientôt!
Un beau dimanche à toi aussi! :-)
tu vas a Madrid en Espana con frecuencia tambien? No visito la Madrid pero espero la visitar pronto.
Kev en Nuevo Zelanda
Hola Kevin!
Has vuelto ahora como español?! Lol! :-D
No, Madrid es diferente para mi. La conozco mucho peor que a Paris.
Pero para ti será la gran vuelta! Cuando vengas a visitar Europa, por supuesto tendrás que quedarte en muchas ciudades y capitales diferentes, para que puedas aprovechar muy bien tu viaje!… No creo que va a ser fácil organizar un viaje así tan complejo… Y tampoco podrás escoger solo a los países cuyas lenguas hablas… Te deseo lo mejor para una aventura tan interesante! :-)
Vamos por partes:
1. Também eu me habituei a ver o obelisco na Place Vendôme, mas nunca deixei de me interrogar se não deveria estar no seu lugar de origem. Mas a cultura parisiense de trottoir está cheia de outras referências ao Egipto antigo, e nem mesmo Mitterand, também ele muito esfíngico, resistiu a encomendar as pirâmides do Louvre ao I.M. Pei. Tiques de uma civilização que se julga ainda faraónica.
2. Em relação à comédia preversa que nos chega diariamente da Améria profunda, e não tão profunda assim, o que me devolve a esperança é que muitas das críticas mais inteligentes e lúcidas ao sistema são feitas, precisamente, por norte-americanos. Podem ser uma excepção à regra, ou a minoria, mas existem e fazem-se ouvir.
Abraço e bom resto de domingo.
Olá Oz!
Por partes iremos então:
1. Na place Vendôme está uma coluna (que pretende imitar a de Trajano) e tem no topo uma réplica de uma estátua de Napoleão como César (muito estilo Império para o meu gosto...). Na Concórdia é que está o obelisco palmado em Luxor; se em Paris faz um figurão (admito que faz), em Luxor porém nota-se a sua ostensiva ausência pelo desiquilíbrio em que se encontra agora a entrada «faraónica» para a sala hipóstila. É pena... Mas a História não pode ser rescrita, não é?...
2. Concordo plenamente contigo! Aqui mesmo na blogosfera - e vindas de alguns blogger friends - tenho lido as análises mais lúcidas e as críticas mais pertinentes, o que reconheço nunca me parecera possível. Porém, penso também que se trata de um escol e portanto de uma minoria. No meu textinho tentei apenas uma caricatura em dose concentrada dos muitos fios em que os EUA se encontram enredados. Nada mais.
Obrigado por teres «entrado» no texto! Um bom final de domingo! :-)
1. O obelisco é um pingo de mijo, comparado com a gruta de Ali Babá que é o Museu do Louvre.
2. Da América, nem bom vento, nem bom exemplo.
Boa semana! :)
Olá João M.!
Curto e duro. O obelisco foi palmado, mas por isso não deixa de ser de uma beleza que transtorna... A mim, pelo menos...
Quanto ao Louvre - e, já agora, a quase todos os grandes museus nacionais ocidentais -, as grandes pilhagens históricas estão lá todinhas, muitíssimo bem documentadas... Nem Ali Babá!...
Direi ainda que a História não a podemos rescrever, apenas tentar corrigir, aqui e ali... E mesmo assim...
Um abraço, meu caro! Boa semana «pour toi aussi»... :-)
Tens toda a razão. É na Place de la Concorde e não na Place Vendôme. Um erro lamentável para alguém que, como eu, julga conhecer bem Paris. :o)
Olá Oz!
Que todas as trocas fossem assim... Ainda não há muito, qualquer imagem de praça parisiense bem podia ser para mim a Vendôme, a République, a des Vosges, eu sei lá... Se tivesse «coluna» no meio, era uma qualquer...
Um abraço! :-)
Meu caro Ric
não comentei o primeiro post, à espera do segundo, para não me repetir, e afinal eles são bem distintos.
Vamos por partes; sobre Paris, e tendo em conta o que já li no outro post, acho que me vão esbofetear por eu confessar algo que me ocorreu, a primeira vez que cheguei e vi Paris; vinha de Londres e Paris pareceu-me uma "aldeia", com as devidas reservas. Londres esmagara-me, era tudo diferente, e Paris era mais parecida com as coisas que eu conhecia ou imaginava. Atenção, eu adoro Paris, Paris é ums festa, Paris é linda e respira-se muito bem em Paris.Portanto, não me escorrcem, s'il vous plait!
Mas há algo que eu continuo a não gostar em Paris, são as suas gentes.
Não digo isto por influência de estar de regresso de novo de Londres, seria pura idiotice. Aliás quero e preciso de rever Paris.
Quanto ao tema deste segundo édito, apenas isto, no mais puro estilo Catatau: Americans, Bush & Cª. "fuck you!!!
Salut, mon chére.
Olá João C.!
São realmente duas cidades bem diferentes, Paris e Londres. Estou em crer que se gosta de uma por umas coisas e de outra por outras.
Quanto aos habitantes, bem, é proverbial a arrogância dos parisienses... Não tenho razões de queixa, mas sei bem que são assim...
No texto, o artigo de jornal é pretexto para desancar naquela gente transatlântica. Deu-me muito gozo!
À la prochaine!
Um abraço! :-)
Olá. Minha questão é sobre seu lema "Só sei que nada sei". Estou buscando a tradução literal do que foi realmente dito por Sócrates, e como encontrei algo que parece ser o texto original, achei apropriado esclarecer. Muitos dizem que a frase seria "quanto mais sei, mais sei que não sei" (ou seja, o ponto discutido é a palavra "nada"). Outros diriam que é a versão primeira mesmo, conforme o a Apologia de Sócrates escrito por Platão. Como não possuo obras no original em grego, muito menos saberia traduzí-las, gostaria de saber sua opinião a respeito. Meu e-mail é pauloa.c@bol.com.br. Gostei muito de seu blog. Grande abraço!
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