segunda-feira, 14 de maio de 2007

I. «Les derniers instants d'une année…» (Final)

«Que a propriedade possa hoje ser um roubo é ideia que em tempos lhe pareceu mais subversiva, dispara o escritor sobre um Mark perplexo. E já que a política viera à colação, alvitra que ainda se pode crer na democracia, da qual, porém, os cidadãos estão a afastar‑se cada vez mais, resvalando da descrença para o desprezo. Já ninguém suporta tanto bolodório imbecil. Em tempos não muito distantes mas já perdidos, o democrático era um bom regime. Confundindo bom com óptimo, nada temos feito que impeça o trabalho de sapa a que os eméritos mestres do improviso e do atamanco se têm dedicado, sem pudor nem embaraço. É o menos mau, vão dizendo, mas a verdade é que ainda não está completamente ao gosto deles. Ainda não está a cair de podre. E os media vão dando uma preciosa ajuda. Estão para a política como o dinheiro sempre tem estado para a felicidade. Não a compra, mas manda‑a buscar.

Ao político dito mediático, que deve ser, sempre ou quase, um tecnocrata e nunca, por exemplo, um artista, basta‑lhe já só a ilusão, a miragem de algum carisma para ir vencendo, mesmo sendo generalizada a convicção de que dele ressumam apenas estultícia e incompetência. Assanha‑se contra os adversários e promete mundos e fundos a quem já não está à espera de nada e o apelida de troca‑tintas. Mas ele, dedicado a uma cabotinagem que já não engana ninguém, lá vai louvando os muitos méritos da sua democraciazinha, como é sua obrigação. A muitos títulos, a pornocracia é mais honesta, diz o escritor numa gargalhada breve a esconder desconforto. É que a democratura, como é apelidada, se vai instalando sobre este descalabro irracional, impondo a ganância, a corrupção e a impunidade e expendendo as opiniões e os alvitres mais ignaros arvorados em verdades sempiternas. O objectivo final é um só. Instituir o que é mais rasca, reles e ruim, e, desenfreada e soezmente, nivelar tudo por baixo, para que os seduzidos, os submissos e os subornados se sintam promovidos na mediocridade em que vivem atolados. É assim que uma qualquer jovem suburbana, semianalfabeta, sem sombra de uma única ideia na cabeça a que possa chamar sua, é transformada da noite para o dia em celebridade, ainda que por um lapso de tempo tão ínfimo que nada a pode compensar da frustração e da raiva de logo ser remetida ao anonimato originário, onde se lhe refina a malvadez com que vive desde que veio ao mundo. Só os míseros de espírito vivem bem, talvez mesmo felizes. Todos os outros sofrem com uma consciência que nada consegue aliviar.

Quanto à adaptação ao cinema do seu romance, argumenta o escritor que o filme, tal como o livro, pretende ser uma reflexão, um estudo de casos, uma exposição do fenómeno, e não apenas mais uma sequela epifenomenal, e que muito ficou a dever à leitura atenta, perspicaz, original e inteligente do realizador. Em resposta a um tímido reparo sobre esta concepção tão niilista e tão apocalíptica do homem e do mundo, o escritor confessa a um Mark abismado que, com cada vez mais homens e mais mulheres redimensionados, é extremamente difícil, é praticamente impossível criar a beleza de que muitos ainda se lembram, mas que já só poucos vão cultivando. Resta‑lhe saber por quanto tempo ainda será possível fazê‑lo. Mas, avisa, quanto mais obscuro e feio se for tornando o mundo, mais bela e luminosa se desvelará a poesia. Afinal, cada um de nós encontra‑se sempre mais facilmente consigo próprio na visão de uma copa frondosa da árvore mais próxima do que numa obra‑prima realizada por mãos de bípede, remata o escritor com um ar ausente, que desfaz depois com uma súbita gargalhada, fixando o olhar vivo e perscrutador na janela da sala, que enquadra uma das magníficas árvores do jardim. E interroga‑se como se poderá ainda sonhar, se não se redescobrir um qualquer outro pancalismo, na arte como na vida. É que o mal sempre soube proliferar sem precisar das ajudas que hoje tudo e todos lhe dispensam. Diz‑se com muita frequência que "o que é doce nunca amargou", quando se deveria repetir com muito mais insistência que "o que é belo nunca afeou". É aqui que se revela a obscena escropragia materialista dos nossos dias.



O – à época – belíssimo James Spader no papel do escritor inglês, no filme…

Nesta busca da beleza, o Mark julga entrever uma faceta das vivências orientais do escritor, a qual se revela também numa perturbadora perspectiva de futuro. Se a espécie humana estiver destinada a extinguir‑se às suas próprias mãos, como parece poder vir a acontecer, ao menos que este auto‑aniquilamento seja uma bênção para as formas de vida que, vitoriosas, lhe consigam sobreviver. Quem sabe se não será uma espécie com desígnios mais altruístas? A História segue o seu curso, com sobressaltos e solavancos, quer haja ou não homens que continuem a escrevê‑la. Mas, como se estivéssemos sempre a assobiar para o lado, mostramo‑nos a toda a hora muito admirados por ela seguir o rumo que lhe vamos imprimindo e não aquele que declaramos querer que ela siga. Em resumo, não há nenhum motivo para espantos. É normal que aconteça o que acontece, já que somos todos nós os autores e os actores desta farsa de muito maus costumes.

Terminada a entrevista, ambos bebiam um whisky ao lusco‑fusco do Inverno britânico antes de seguirem para Londres, onde o escritor faria uma palestra sobre o último romance e daria autógrafos, quando, entre o irónico e o profético, o escritor se terá virado para o Mark e lançado o desafio. "Se acaso considerar que o que acabo de lhe dizer é apenas fruto da caturrice de um velho desadaptado, ao menos durante o trajecto para a City tente observar o que o rodeia à luz desta nossa conversa e liberte a mente dos modelos rotineiros de análise. Logo me dirá se estou assim tão equivocado e também, como já houve quem com isso pretendesse apoucar‑me, se as minhas palavras lhe soam como as de mais um profeta da desgraça. Já pensou que nem toda a literatura de terror poderá dar uma imagem, por mais pálida que seja, dos horrores hodiernos deste mundo?"

Eu começava a lembrar‑me de cenas, por sinal bastante acabrunhantes, do filme que o Mark, visivelmente ainda mal refeito do choque sofrido, ia contando a traços largos. Ia‑me apercebendo da extensão do pesadelo posto a nu por aquela visão desapiedada de um mundo que era também o meu. Como fazer um balanço sereno do ano que está prestes a findar‑se, começava a interrogar‑me. De súbito, um ambiente estrepitoso anunciou a chegada da meia‑noite. E no ar saturado do café‑bar pairava já um odor mordente a outro tempo.
Bom Ano Novo.»

Então?…
Que tal este «breve instante» de uma pré‑passagem de ano?
Aproveito para vos deixar aqui um pequeno desafio. Cá vai:
Qual o escritor inglês que poderá ter sido a inspiração para este «escritor inglês»?
Ele é célebre, galardoado, e alguns dos seus romances foram adaptados ao cinema com algum sucesso e mestria…
Make your bets! (Laughing out loud!…)

RIC

2 comentários:

lampejo disse...

Concordo plenamente com esta tua frase: "Só os míseros de espírito vivem bem, talvez mesmo felizes. Todos os outros sofrem com uma consciência que nada consegue aliviar."

Quanto a beleza, ela no meu entender está nos "olhos" de quem a vê e na razão de quem a sente...

Quanto ao o escritor inglês, não me arrisco a adivinhar...

RIC disse...

Olá, Lampejo! Obrigado por teres «ousado» quebrar o silêncio!
Hei-de voltar ao escritor inglês, mas por agora acrescento apenas mais uma dica à foto que acompanha o texto: talvez se torne mais fácil fazer uma aposta...
Um abraço! :-)