sexta-feira, 27 de abril de 2007

I. Vidas límbicas…


«Um Poeta que deixou tudo dito, ou quase tudo, vem em meu auxílio com "Quer pouco: terás tudo" e "Não só quem nos odeia ou nos inveja". Lembrei‑me de Ricardo Reis, aquele que por um mistério ciosamente guardado pelos deuses se libertou da lei da morte. Se os melhores de nós, em todos os sentidos, se tornassem imortais, como é que seria este mundo? Quem andaria já há séculos, há milénios, entre nós? Quem denunciaria tal falsificação da História, grosseira e manipuladora? Quem acreditaria que seríamos todos mais felizes com esses beatos espectros à nossa volta, a cruzarem as nossas vidas de comuns mortais? Eu prefiro a lei da morte. Mas um poeta quer‑se imortal, e assim também entenderão os deuses. Como o Poeta há setenta anos, também eu nunca tive a clássica serenidade que me permitisse querer pouco para ter tudo. Faltou‑me sempre a audácia para ambicionar mais do que o pouco que fui tendo e, porque nunca soube querer nada, nunca me soube verdadeiramente livre. Que me tenha oprimido o amor que me tiveram, nunca o saberei. Não penso que o tenha sentido, nem sinto que o tenha pensado.

Há quem se lance, debata e perca a amar o amor, um erro solitário que raramente é percebido a tempo e nunca é encarado de frente como um risco, um grave perigo. Quantos amantes, poetas e pensadores não têm lançado sérios avisos, alarmes, alertas e gritos, os mais aflitos e mestos. Em vão. O perigo está sempre mais próximo e é sempre mais real do que se está disposto a crer e a aceitar. É inevitável a vertigem do abismo. O sofrimento de tantos não é exemplo bastante para outros que, dominados por um baixo instinto ou estonteados por uma fugaz tentação, se deixam subjugar sem resistência. E quando a queda se consuma, a ilusão é perfeita. Em volta não há ninguém. Sobra apenas a intenção irreal, idealizada. Há quem tenha a inteligência ou a sorte – não sei qual delas é a certa – de aprender no momento exacto, nem mais cedo nem mais tarde, o que é mais importante para uma mais recta condução da vida. Sei apenas, dos caminhos que fui percorrendo, que a seu devido tempo não me terão ensinado – ou então eu não terei sabido aprender – o que tanta falta me tem feito. E agora, ainda mais. Sobre os pequenos buracos nos caminhos do passado terei facilmente saltado sem sequer os ver, para surgirem agora à minha frente como abismos intransponíveis. Quanto mais o tempo passa, mais assustadora é a impressão de que não terei como atravessar esses abismos, refém de um momento infinito. Quando menos esperar, a vida terá deslizado sorrateira ante o meu olhar distraído, e eu estarei ainda e sempre preso ao instante infindável.

Por muitas razões perscrutáveis, conformarmo‑nos com a solidão é destrutivo. A atracção insidiosa que ela exerce é ainda mais perigosa, por se confundir facilmente com uma enganosa auto‑suficiência. É assim que um hábito se vai insinuando, silencioso e sorrateiro, e se vai transformando aos poucos numa rotina cruel, quase um vício. De início, a sensação de liberdade é avassaladora. Parece ser o ansiado fim dos constrangimentos mais aviltantes, das submissões mais humilhantes, das dependências mais escravizadoras. Pura ilusão, que tudo permanece na imutabilidade dos seus equilíbrios, ainda que instáveis. Quando a solidão começa a apoderar‑se de tudo, é ainda uma sensação inebriante que prevalece, como se num átimo, por um passe de magia da vontade, tudo pudesse ser reposto e reconduzido à situação inicial. Pura ilusão, também.

Não procuramos os que não nos procuram. E os que não nos procuram não o fazem porque nós não os procuramos. O que havia em volta, gente e coisas, já lá não está, e o que parecia ter sido uma vitória começa a revelar‑se uma penosa derrota. Um tempo sem tempo, coagulado como sangue há muito vertido e já ressequido. De súbito, a solidão pesa como um fardo insuportável, e quanto maior é a consciência dela, maior é o peso do nada. Torna‑se avassaladora a sensação de que nunca se deixará de estar sozinho, e quanto mais se lhe quer fugir, mais se estende desmesurado o deserto que a solidão estendeu em volta. Segue‑se o efeito destruidor.

Todas as ilusões e todas as fantasias se esfumam no vazio, e o quotidiano revela‑se espectral. Restam memórias e sombras e o absurdo de olhar em volta e nada ver. As mãos alçam‑se para agarrar o que há pouco ainda parecia estar ali. Nada alcançam. A boca profere palavras que nenhuns ouvidos podem ouvir, clama em silêncio estonteante por presenças tornadas irrecuperáveis ausências. Vem o arrependimento, tardio, que faz querer percorrer todo o caminho em sentido inverso. Poucos são os que conseguem empreender a viagem. Não é permitido ficar onde se merece estar. Não se faz parte da capelinha. Não se soube obter o imprescindível quinhão da alforria. Logo, é óbvia a impossibilidade. Os que querem regressar caminham ao longo de um tempo infindo, mas nunca conseguem voltar ao ponto exacto onde começou a deriva. Isso seria retroceder por obra e graça de algum maquinismo inverosímil. Inevitável o destino que transforma todo o erro menor em crassa asneira. Mas é desse instante, quase imperceptível, que se fica refém para sempre.

Às vezes, da forma mais imprevista e brutal, a meio de uma reflexão sobre os imponderáveis rumos da vida, ou ao esboçar um plano para enfrentar novos tempos que arrastam mudanças e contrariedades – umas imperceptíveis, outras, pelo contrário, que se abatem sem prenúncios e causam grande ansiedade –, de repente, um pavor incontrolável e um pânico descompassado apoderam‑se de mim, aturdem‑me até à alucinação e transmudam aquele momento numa diuturna sessão de torturas indizíveis. Este desvario só começa a dar sinais de poder acabar quando consigo introduzir no fluxo dos pensamentos, quase à socapa, um elemento insignificante de alheamento. A pouco e pouco, o pavor e o pânico vão diminuindo, e eu vou regressando a uma tranquilidade apenas aparente, que só muito lentamente cede a uma prostração exausta, como se me tenha esgotado num esforço breve mas tremendo. Quando a crise parece enfim debelada é que me apercebo do longo tempo que entretanto se escoou e se perdeu naquele transe de ausência e de vazio. Neste último decénio, não sei de vivência mais aflitiva. Se os ventos vão soprando de feição sobre umas quantas faces da vida, mantendo a ilusão de que o leme permanece seguro em mãos firmes, sobre outras, porém, são ventos de procela que se abatem e, num ápice, tudo devastam e arrasam. E de uma vida organizada sobra um espesso e viscoso sargaçal à tona de um mar ignoto que tolhe movimentos, quebra resistências e condena a uma modorra letal.

É tão descomunal, tão desmesurado o pavor de viver como é negro e sem fundo o absurdo desejo de morrer. Como se, para seguir em frente, se tenha de saber manter, exacta e constantemente, um tenebroso equilíbrio. Nem deixar‑se transir pelo pavor, nem ceder desnorteado ao desejo. Num átimo, fica‑se perdido sem saber o que é ter uma vida para viver. Mas até tudo isto, em vertigem desvairada de sorvedouro, o quotidiano tenta varrer da memória, como se o tempo das recordações, mesmo as más, seja um proibido luxo sumptuoso. E percorrer todo este caminho de memória é peregrinação negra de uma alma torturada.»

Um excelente fim-de-semana para todos!

RIC

6 comentários:

lampejo disse...

Caro amigo Ric, bem sei que não serei a pessoa mais indicada para falar, mas no entanto, existe em mim um sentimento, que sempre existiu, que não me permite assistir sentado, a tanta tristeza. Não te agarres a ela, nunca se sabe o dia de amanhã, e quando menos esperas o sol voltará a brilhar, por isso mantém a janela aberta.
Forte abraço.
Bom fim-de-semana.

RIC disse...

Meu caro Lampejo, obrigado pelo teu cuidado, mas escaparam-te as aspas e a etiqueta... Este texto faz parte de outro bem maior, do qual já aqui leste outras partes...
Neste momento, não espelha o meu estado de espírito, mas apeteceu-me editá-lo aqui. Só isso...
Abraço forte! :-)

Anónimo disse...

Eu não diria "tanta tristeza" como o amigo Lampejo.
Mais me parece uma daquelas introspecções que nós nos obrigamos a fazer de quando em vez, a partir de uma certa idade. E, amigo Ric, estarias tu pronto para uma introspecção real e verdadeira sobre ti próprio? Será o momento ideal? Sim, pois, o pouco que de ti conheço, dá-me para entender que não só és alguém com uma cultura e um "savoir faire", muito acima da média, e suficiente lúcido para o saberes; momentos menos maus, todos os vamos tendo, mas sabes que és dono de uma imensa capacidade de "dar a volta por cima", sempre que o necessites. Isso deixa-me sossegado.
Abração.

Maurice disse...

Estimado Ric,

Que prazer poder voltar a mergulhar na tua prosa! :)
Assumo, não sei se bem, que não é um texto auto-biográfico. Mas não posso deixar de pensar que alguma coisa há-de ter de caminho percorrido. Teu, meu e de muitos outros. Um belo naco de prosa sobre a solidão lúcida (que é a que mais dói!). Parabéns pelo texto. E pelo regresso...:)

Forte abraço

T-Bird disse...

sad pic, but accurate for what it describes

RIC disse...

Caríssimos!
Ainda bem que gostaram! Apesar de tudo...
Donde veio este virão mais. Em breve, espero...
Abraços para todos e muitas saudades!
Desejo-vos o melhor!
:-)