E, assim, fui‑me convencendo de que nós, portugueses, éramos aquilo e só aquilo. Saudades, penas e lamentos. Qualquer data comemorada era um sombrio tempo de finados, e estávamos sempre a exaltar lutos sempiternos. A História Pátria, tal como a começava a compreender, existia enquanto louvor da morte para enaltecer áureos tempos há muito enevoados e egrégias figuras cujas biografias convinha não aprofundar muito, não se fosse descobrir que quase sempre a Pátria lhes fora madrasta. No Dia da Raça celebravam também o Poeta, que de si disse ser «aquele cuja Lira sonorosa / Será mais afamada que ditosa», (1) antevendo o que a morte lhe teria ocultado, não fora a clarividência exercitada no saber de experiência feito. Ele, o Príncipe dos Poetas, que empunhara «numa mão sempre a espada e noutra a pena», (2) acabara os dias na miséria esmolada de uma tença e sem a caridade de lhe terem dado um funeral.
Mas enfim, cinco séculos volvidos, um povo manietado e ingrato dedica‑lhe um monumental cenotáfio, um grandioso túmulo vazio, no Mosteiro dito dos Jerónimos, o de Santa Maria de Belém. O mesmo povo que tem passado a vida a remoer que mais vale tarde que nunca e continua, ainda e sempre, «metido numa austera, apagada e vil tristeza.» (3) Proclamara o Poeta que «esta é a ditosa pátria minha amada», (4) a celebrada «Ocidental praia lusitana», (5) que a pouco e pouco se foi distanciando cada vez mais do mar e se tornou, à vista de todos, um oásis moribundo, asfixiado por um deserto impiedoso que o foi cingindo em movediços enleios fatais. Por raro talento, os primeiros desbravadores, magnos navegadores, haviam rasgado caminhos para que outros fossem trilhá‑los, recostando‑se depois a fitar o longe e a lamuriar fados e saudades, que o muito engenho parece não ter dado para mais.
No Terreiro do Paço, praça de outros comércios, mães de negro, irmãs e jovens viúvas, em silêncio marcial, pareciam escutar os louvores e aceitar as medalhas a título póstumo, engolindo as lágrimas e sufocando as raivas, em vez de poderem apertar nos braços filhos, irmãos e maridos.
Neste cais de prantos de onde eles em armas
Foram matar pretos pelos seus senhores
Com cantares chamemos as frotas iradas
Que à guerra levaram os nossos amores.
Vêm os soldados e foram‑se as Áfricas,
São outras as guerras. Não mudam as dores. (6)
E as dores não mudariam tão cedo, porque «tudo está bem assim e de outro modo não podia ser», como iam ainda papagueando os fiéis indefectíveis do regime em manifestações de júbilo que já não convenciam ninguém. O que tocassem conspurcavam, adulteravam ou maculavam, como o primeiro andamento da Sinfonia à Pátria de José Vianna da Motta, refém do susto e do pavor que espalhavam as alocuções ao país, intermináveis, abstrusas e bacocas. Ainda agora, ao ouvi‑la, esforço‑me por ultrapassar aquele primeiro andamento, para que não me venham à memória as penosas prelecções, as «conversas em família» de um regime primaveril que já só procurava ver o fim de um último inverno. Em tempos que então eram já distantes, o jubilado presidente do conselho do seu país‑concelho dera uma resposta eloquente a um fiel colaborador do mundo da música. «Não tenho dinheiro para os que choram, quanto mais para os que cantam.» Pois, pobretes mas alegretes. Sempre. E entre o Natal e o Ano Novo, uma doméstica televisão amestrada enchia‑se de «Adeus, até ao meu regresso», que fazia emudecer o desejo mais silente de festejar a quadra da família.
______________________________
(1) Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, X-128.7,8.
(2) Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, X-145.8.
(3) Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, VII-79.8.
(4) Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, III-21.1.
(5) Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, I-1.2.
(6) Natália Correia, Cantigas de Amigo, I-3.ª estrofe.
RIC
12 comentários:
HAAAAAAAA que belo retrato nosso!!!
Nós somos assim,sem dúvida!!!!!
Mas também somos aqueles que "que por obras valerosas, Se vão da lei da morte libertando"
Estupendo. :)
E a Natália Correia ficou a matar (como sempre fica, aliás).
Catatau
Completo. Nem falta o "dia da raça" no Terreiro do Paço, e as filas de desejos de um feliz Natal e um ano novo cheio de "propriedades" :) É que prosperidade era coisa que na altura não se tinha em "vista".
Muito bom mesmo :)
Também aqui teria uma história para contar. É que a "generala" não ia em "dias da raça"... por vezes sobrou para mim :(
Olá Teddy Bear! Agrada-me de algum modo que a minha leitura do que é, em termos gerais, ser português não seja contestada, mas até confirmada!
Obrigado pelas palavras simpáticas!
Quanto aos que se libertam da lei da morte, convenhamos que são poucos. Mas são bons!
Abraço! :-)
Olá João Manuel/Catatau! Este novo passo significa que estás mais próximo de um blogue? Fico a aguardar...
Ainda bem que gostaste! Obrigado!
Abraço! :-)
Olá Tongzhi! Obrigado pelas tuas palavras! De facto, só uma minoria saberia então o que significa «prosperidade»...
Cada vez gosto mais da tua «generala»! Parabéns! Estou certo que é uma Grande Senhora! Hás-de contar-me - quando puderes - como é que sobrava para ti. Se calhar, levavas na corneta, não?
Rsrsrs!
Um abraço! :-)
É claro, caro Ric, que gostei imenso deste texto.
Nele fazes, e bem ,como é teu hábito, uma análise muito apoiada em textos e comentários apropriados, de uma época um pouco esquecida na nossa história recente: o marcelismo!
E depois deixa-me anotar dois factos extra texto:- Concordo contigo quanto ao João Manuel (Catatau já era...) e faz-me uma curiosidade doida a "generala" do Tonghzi (será que sou estúpido?).
Um abraço, Ric.
Não Ric, não levava na "corneta". A corda quebra sempre pelo lado mais fraco, e como dos filhos era o mais novo... "papei" algumas coisas dessas :(
Pinguim,
A curiosidade matou o gato, dizem!
MIAUUUUUU!!!
Olá João C.! (Acho que a partir de agora terei de recorrer a iniciais para vos distinguir.)
Ainda bem que te agrada! É sempre bom submeter o nosso ponto de vista ao escrutínio alheio. Apesar da minha memória de elefante - e de ter verificado e confirmado os dados em causa -, poderia sempre haver alguma falha factual.
Quanto ao João M. já me pronunciei. Quanto à senhora «generala» do Tongzhi, não és de todo estúpido! Creio, porém, dever ser ele a apresentar-te a senhora, já que não foi aqui, no blogue, que ele ma apresentou.
Um abraço para ti também! :-)
Pobre Tongzhi!... Ter de fazer de «pau-de-cabeleira» ou de «chaperon» (esta noite sinto-me tão erudito...) em situações tão lamentáveis!... Estou mesmo a ver os manos e as manas a descartarem-se do tenebroso frete e a delegarem no maninho mais jovem... Rsrsrs!
Pois é! A curiosidade matou a gataria toda! Rsrsrs!
:-)
Rendida! :-)
É fantástica a forma como «vivemos» (ousei o plural) tudo aquilo que é lido.
Toda a minúcia existente na I e II parte está exímia!
Obrigada!
:-)
Olá Carla! Muito obrigado! Fico muito contente com o facto de o relato e as descrições terem a força envolvente que vários comentadores referiram...
Não tens de quê! É um prazer!
Beijinhos! :-)
Enviar um comentário