Saudoso Irmão!
Sei bem que estas linhas são razão suficiente para que te ocorram, pelo menos, duas interrogações: se terei perdido o juízo, ou se foi a minha fé positivista que me abandonou.
É a ti que me dirijo, são para ti estas palavras. Não estranhes esta minha atitude. Não é nem a carta, que nunca poderei enviar-te, nem a página do diário que, bem sabes, nunca mantive. Nestes últimos dias tenho pensado muito no que te quero dizer. Se tivesse apontado tudo o que me ocorreu, decerto teria matéria para um longuíssimo texto. Mas tal não é possível. Não tenho todo o tempo do mundo.
Decorreram anos – muitos – desde que nos vimos pela última vez. Custa-me muito a acreditar, agora ainda, que assim é. Depois daquele Natal e daquele Ano Novo, ficámos limitados a uns poucos contactos, não menos importantes por isso. Mas conversas como as que transformavam as noites em dias infindáveis nunca mais pôde haver. Nunca mais tive um interlocutor que se te pudesse comparar. É egoísta da minha parte dizer‑te isto assim, mas é verdade.
As amizades da idade adulta são com frequência enganosas. Não porque haja a intenção deliberada de abandonar o outro ou de o trair. Mas compreendo mal a volubilidade das relações de hoje em dia. De início, as atenções, os cuidados e as preocupações são desproporcionados numa relação que mal começou. Pouco depois, porém, o que se afigurava ser já uma amizade, de repente, redunda num mero conhecimento de circunstância, como se apenas uma curiosidade inconsequente tivesse norteado os passos subsequentes ao primeiro encontro, como quem diz "Conheci-te como quem experimenta uma peça de roupa, mas não gostei muito do efeito". Mas uma amizade da infância ou da adolescência, por força da longa convivência, está ao abrigo dos enganos e das desilusões, e chegar a adulto com uma, uma só que seja, é além do mais uma prova de transparência, de despojamento e de dedicação por parte daqueles que há muito aprenderam a estimar-se. E é por tudo isto – e muito mais – que a tua ausência é tanto mais difícil de suportar.
Neste dia em que a tua ausência é especialmente e dolorosamente pesada, recorro a textos teus, para que o desgosto seja menor. Estou grato a uma eventual força superior por esta minha característica de não me desfazer das coisas com facilidade. Neste caso, é uma virtude. Cartas, postais, bilhetes teus, tudo eu fui guardando, impelido sei lá por que premonição, sem outro propósito que não fosse o de não me desfazer daquilo que fora escrito em minha intenção e que eu por isso muito prezava. Ao ler aquelas cartas, percebo melhor os caminhos que a nossa amizade percorreu e refaço‑os de memória. Sempre que a tua ausência pesa, é maior o consolo que elas me trazem, e sinto também uma serena alegria por conseguir entender melhor o que, de início, me pareceu incompreensível para todo o sempre: a tua partida.
Naquela tarde luminosa, a última, despedimo-nos com um "Até amanhã". Estávamos ambos ausentes de nós próprios pelo peso daquele momento. Nem tu quiseste dizer adeus, nem eu me apercebi de que chegara a hora derradeira. Tudo pareceu parar. Digo bem, pareceu. Nada mais enganoso que ter pensado que o silêncio seria, de então em diante, absoluto. Ao longo de todos estes anos, poucos terão sido os dias em que não me tenha lembrado de um ou outro momento vivido por nós. Em que não me tenha parecido que continua a haver entre nós uma espécie qualquer de comunicação. Em que a saudade não tenha sempre aumentado.
O absurdo do fim ainda hoje me consome. Cheguei a crer que nunca mais voltaria a articular palavra, tão longo e tão profundo foi o mutismo a que me fui remetendo. Habituei-me ao silêncio. A escutá-lo e a vivê-lo. Vezes sem conta tenho ainda tentado desvendar os sinais que, de um ou de outro modo, iluminam os dias, abrem os caminhos e quebram os silêncios. Em vão. Não parece que eu tenha sido dotado daquela capacidade que permite a muitos navegarem à bolina pela vida fora, sem demais preocupações. Tudo o que antes fora força e ânimo, é, ainda hoje, desde então, debilidade e desnorte.
Por muito que isso te admire, tenho pensado na possibilidade de um encontro. Quero acreditar que é possível, que há forma de nos encontrarmos. Que te verei como te via naquelas noites infindas de conversas sem fim. Não consigo deslindar se estou perante um desiderato, se um desígnio. Se esta minha ideia é um desiderato, então, se eu desejar intensamente com todas as forças que possa convocar, o nosso encontro será certo. Dependerá sobretudo da intensidade do meu desejo. E se for um desígnio? Neste caso, a minha ideia será um plano e, a sê‑lo, se for devidamente desenvolvido e aplicado, concretizar-se-á. Esta é a palavra que me agrada e me tranquiliza.
No final daquela tarde luminosa em que conversámos fugazmente pela última vez, estávamos ambos ausentes de nós próprios. Será que esse ínfimo instante marcou o lugar onde um dia o nosso encontro se concretizará? Estou em crer, não sei porquê, que nos encontraremos em breve, ainda que este breve se meça por outro relógio em que não sei ver as horas.
Vale – e muito – esta experiência de me poder dirigir a ti, meu saudoso Irmão. Noutro contexto, o que não diriam deste texto e de quem o escreveu?…
Até amanhã. Até sempre.
PS - Sei que tens saudades dos dias em que festejávamos o teu aniversário.
Hoje, fazemo‑lo de outra forma: recordamo‑los. E assim estamos contigo.
Faz hoje 48 anos que nasceu o meu melhor amigo Z. L.
Fez 13 anos no passado dia 8 de Abril que o Z. L. morreu.
RIC
18 comentários:
Eu acho que o melhor que nós podemos fazer por alguém que já foi embora é lembrar do que essa pessoa nos deixou de bom.
Pelo que eu puder perceber, você tem recordações muito boas dele.
E dá pra perceber que ele ainda tá muito presente na sua vida atual. Isso é bom.
Acho que a morte não separa ninguém de ninguém, a não ser fisicamente. Mas espiritualmente e emocionalmente, de jeito nenhum!
Bom, um abraço, amigo.
Olá Carioca!
Muito obrigado pelas tuas palavras! Elas são especialmente bem-vindas num dia como o de hoje...
Um forte abraço!
- Tudo bem consigo, Carla?
- Sim...
(...)
- Psiuuu...
- Sim?
- Que se passa com a 'menina'?
- Nada, nada...
Apenas leio um édito, num blog.
...
Por diversas razões, o teu post de hoje vai ecoar na minha cabeça ao longo do dia.
Estou em crer que nunca irei saber lidar com a ausência, com a saudade...
Abraço! (Permites ser apertadinho? Vá, chama-me nomes...)
O que escreveste é muito belo, mas muito pessoal.
Permite-me apenas uma observação: se o teu "reencontro" é certo, porque o desejas já?
Olá Carla! Gostei muito da ideia de fazer o comentário em diálogo dramático. Ficou bonito. Obrigado!
É difícil, sim, e há dias bem menos fáceis que outros. Geralmente, não é o exacto dia do calendário, mas sim os de aproximação...
Um abraço apertadinho sabe sempre muito bem. Chamar nomes (rs!) é que não! Acabou! Tudo menos que as pessoas se chateiem, com ou sem razão...
Beijinhos! :o) (Isto deveris ser um Pai Natal, mas parece-se mais com um palhaço... rs!)
Olá João!
Eu sou de extremos, realmente. Ou me mantenho neste espaço no grau zero da 3.ª pessoa ou, de repente, exponho-me da forma mais desbragada... Tens razão!...
O que se calhar quero «já», como dizes, é ter a certeza do reencontro, é convencer-me a mim próprio de que o reencontro ocorrerá, é que a minha fé positivista não passa de mais um sistema filosófico (ou parte dele) para entretenimento do espírito.
É, no fim de contas, sentir-me mais amparado aquilo que eu quero.
Obrigado por me fazeres reflectir um pouco mais além! (E obrigado também pela mensagem!)
são palavras demasiado pessoais, que para mim tb tem um significado particular, pk tb sei que não é facil lidar com estas ausência.
Olá NB! Há já uns meses - pouco depois de ter criado o blog - que prometi a mim próprio que o édito de hoje lhe seria dedicado.
Embora o conteúdo se torne demasiado pessoal, talvez pelo facto de se revelar sob a forma de uma carta, o mais importante para mim, hoje, é a homenagem a alguém que teve um papel decisivo na minha vida. Há apenas outra pessoa na minha vida com importância semelhante: a minha Mãe.
Obrigado!
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Só passei para ler o teu «aconchego». Para a próxima faço um Pai Natal ;-)
(Desculpa a bonecada)
:-)
Que espanto!!! Como é que consegues? Fica com um aspecto impecável!
Com o's, parênteses e barras oblíquas... Como se dizia aqui Há uns anos, minh'alma está parva...
Parabéns, Carla!
Obrigado pelo momento de distracção!
É verdade, bom feriado!
The rose!
Perder alguém que nos é querido é sempre uma experiência dilacerante. Mas ainda bem que já consegues falar sobre esse assunto. Tenho cá para mim que guardarmos as nossas dores só para nós só ajuda a eternizá-las.
Hello Will! Yes, the rose. Your rose, Will! Thank you so very much! I thought it would be most appropriate for this homage to ZL.
Best wishes!
Olá André! A dor é para sempre, sim, mas o tempo ajuda a mitigá-la, mais depressa ou mais devagar. O mais difícil é o egoísta sentimento de perda... Esse sim, é causa de momentos e de situações muito complicadas.
Obrigado!
The rose is a climber style (refers to it's growth habit) abnd is named "Joseph Coat of Many Colors".
Dreams Golden Fade to Dreams Blue (Part One).
You will **adore** this song selection. Especially the fourth track by Duke Ellington doing something by Grieg.
http://www.filelodge.com/files/room13/316529/Saturday%20Night%20Soup%20for%20the%20Soul%20%2803%29.mp3
Hello Will! Thank you so very much both for «Joseph Coat of Many Colours» and the music selection!
Enjoy your weekend!
BTW the second song was Nino Rota. You would adore him. I iwll be bring you many things by him in the coming years.
2 Ricordo Di Henriette -- What an unbelievable melody – from the Fallini’s film Casanova. The music is by Nino Rota. So tender, painfully tender, and yet sad.
3 Love in Song --This piece by Paul McCartney is a permanent part of my psyche.
My Heart Cries Out For Love
And All That Goes With Loving
Love In Song - Love In Song
My, You're So Fine
When Love Is Mine
I Can't Go Wrong,
Love In Song - Love In Song - Love In Song
4 Ase's Death -- Grieg’s “Ase's Death” (Peer Gynt) – but this is Duke Ellington’s take on this classical piece. My God. This too is become a permanent piece of me. Is this not a funeral walk, with a odd bit of melodic relief provided by the second subject?
5 Visions -- Stevie Wonder, pondering the existence of a place,, where love reigns supreme, but showing conflictions and doubt as to whether such a place exists for him.
Great list! Thanks, Will!
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