«De início, quase tudo parecia idílico. Não estou a tentar pintar por cima de tons mais ou menos sombrios com límpidas cores luminosas e enganadoras. Aliás, também não o fiz então. Não foi a manifestação rápida de diferenças essenciais que começou a ensombrar aquele primeiro Verão. Elas não separam necessariamente e, em alguns aspectos, são até bem-vindas. Mas para quem se revelara tão intensamente carnal, tão visceralmente sensual, o fogo da paixão esmoreceu depressa, e foi essa mudança que me perturbou e confundiu.
Nunca fui propenso a constantes e desvairadas exteriorizações afectivas, nem pródigo em repartir ternuras e meiguices, beijos e carinhos. Mas sei também que não sou excessivamente regrado nem abstrusamente puritano. Percorremos juntos caminhos inexplorados, abrimo-nos ao erotismo, descobrimos o que de bom e mau a Rede Mundial oferece, embarcámos juntos em aventuras inconsequentes de telessexo que, como dizias, acumula as vantagens do sexo comum com a impossibilidade de ocorrerem situações incómodas, inibidoras ou automatizadas, enfim, puro sexo mental pelo simples prazer da novidade e da diferença. Se o prazer é por definição solitário, então que resulte pleno da junção premeditada de solidões…
O sexo foi-se tornando uma actividade desbravada. E desbragada. O conhecimento mútuo dos corpos, dos desejos secretos que calavam e dos caprichos intempestivos que se levantavam como vigorosos vendavais e só se aquietavam no instante do supremo gozo, foi-se apurando como se de uma iguaria cozinhada em lume brando se tratasse. Sem que alguma vez o tivesses notado ou sequer pressentido ou suspeitado, um estranho sentimento de irremediável perda foi-se insinuando em mim de uma forma cada vez menos suportável, como se a cada ejaculação ficasse mais perto da morte. Uma estranha bizarria no meu horizonte, consequência provável de uma idade que exige mais do que apenas a satisfação do desejo. No meu espírito foi-se instalando com firmeza a incómoda e absurda sensação de sémen desperdiçado, malbaratado, da inutilidade daquela actividade fora do contexto – inconfessável e impossível – de querer trazer ao mundo um novo ser, de garantir descendência, de procriar. Evitei e impedi como pude a proliferação destes pensamentos, frutos serôdios de um campo da vida há muito já em pousio.
Pode-se afinal muito pouco contra a força avassaladora da Natureza que, tarde ou cedo, se nos impõe como desígnio supremo da existência. Todo o racionalismo é pouco, débil e recente, ante a ancestralidade inconsciente da função vital. E combati como pude a crise, a meu ver, de meia-idade, aventurando-me lautamente por uma geografia da qual, até então, só conhecia as coordenadas básicas.
De início, havia todas as cores de todos os afectos e de todas as emoções a devolverem-me sentimentos de plenitude que pareciam há muito esgotados, sentia uma indómita vontade de te agradar e de secretamente realizar desejos teus apenas adivinhados. Palavras e actos concordavam e coincidiam. Mas, à medida que o esplendor estival se foi perdendo, a atmosfera idílica começou a adensar-se e as cores límpidas e transparentes ganharam matizes obscuros. Chegado o Outono, pouco faltou para que estabelecesses um calendário e um horário rígido, e qualquer iniciativa que quebrasse aquela rotina sub-reptícia, férrea e nunca negociada, era por ti mal recebida e tornava-se alvo de objecções inconsistentes, para mim, incompreensíveis. Ainda assim, o primeiro ano ainda manteve algum do esplendor daquele Verão e em nada se pode comparar ao que veio depois.
Havia paixão intensa, e creio hoje que um amor equilibrado poderia ter-lhe sucedido. O convívio contínuo não pode satisfazer-se apenas com insistentes trocas de carinhos e meiguices. Isso não passa de proximidade física. Os seres, mesmo os amantes, conversam, comunicam e comunicam-se nos interesses que perseguem e nos assuntos de que falam, tanto os triviais como os que os empolgam. As nossas conversas foram emudecendo e os nossos interesses foram-se revelando cada vez mais divergentes, opostos e incomunicáveis. Cada frase que proferia fazia-a preceder de um «olha», ainda que os nossos olhares não se desprendessem um só instante. Achava que um só «ouve» que eu dissesse poderia ter o indesejável efeito de tornar a conversa muito mais séria, muito mais grave. Quanto mais desentendido me fizesse, menores seriam as possíveis consequências nefastas da conversa. Ou da desconversa. Não se pode falar, a toda a hora e a todo o instante, do tempo que faz lá fora, do carro novo que um vizinho exibiu ou das compras de supermercado que há que fazer. E todas as conversas que tentavam ultrapassar o limiar da mera banalidade, da trivialidade comezinha e poderiam ir construindo outro tipo de proximidade, uma verdadeira intimidade, foram sendo adiadas sempre para mais tarde, sempre para depois. Para nunca. Quando havia que falar de nós, só mil cuidados impediam que o caminho seguido fosse invariavelmente o mesmo. E o silêncio foi ganhando terreno.»
RIC
terça-feira, 16 de outubro de 2007
O princípio de mais um fim
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8 comentários:
Muita "sustância", he he he...
Veio de "lá de dentro"? ;)
Olá caro João!
... Substancial, torrencial, abismal...
Queres saber se «foi vivido»?... Haverá alguma ficção 100% inventada?... Nem «O Capuchinho Vermelho» ou «A Gata Borralheira»...
Um abraço! :-)
Pois...
Uma ficção bem real...Quem já não passou por uma situação semelhante? Porém, quero acreditar no Pai Natal e como tal vou esperar pela segunda parte... Vá, um «happy end», sff!
A escolha da foto fui muito bem conseguida! Adorei!
Beijinho! :-)
Olá querida Susana!
A foto é provavelmente o melhor deste édito... Quanto a um «happy end», acho que o «ric» acerta em cheio quando diz ao «RIC» para tirar o cavalinho da chuva...
És persistente, minha cara, ao esperar por uma 2.ª parte que, a haver, não traria/trará grandes mudanças.
Beijinhos! :-)
Ninguém caminha sozinho porque há toda uma história que acompanha a jornada, histórias de nós e de outros, de encontos e desencontros, de sorrisos e de lágrimas, de esperas e de adeus.
No limite, caminhamos connosco, lado a lado com a nossa alma.
Adorei este texto, de emoções e sem ressentimentos... como só a nobreza de alma consegue incutir.
jocas repenicadas
Olá querida Graça!
Obrigado pela tua reflexão!
Creio que tocaste num ponto que, de facto, é muito importante para mim, mas por ser um «dado adquirido» raramente me detenho a pensar nele: a ausência de ressentimentos. Tanto na minha vida como no que vou escrevendo, mais ou menos inspirado por experiências pessoais.
Fico contente por teres gostado!
Beijinhos! :-)
Lovely image
thinking of you tonight. whereever you are, may your heart be soothed. you are a good soul.
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