segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Au Quartier Latin…

«Continuei pelo Quartier Latin o meu périplo de viandante. Enquanto caminhava pela rue de la Harpe pareceu-me ouvir alguns acordes da ária «Quando men vo», vindos de uma pequena loja. Fui-me aproximando, e era mesmo La Bohème que naquele instante fazia as delícias de uns quatro clientes, talvez habitués, melómanos pela certa, também eles com um certo ar boémio, sentados a uma mesa num canto da sala, numa espécie de cenário de café antigo – o Momus, é claro! Para quem tivesse dúvidas, lá estava uma pequena placa com o nome a revelar a intenção de quem ali instalou aquele espaço como um cenário, decerto um entusiasta de Puccini. Um excelente achado, já que o enredo da ópera é um pedaço de História daquele bairro. E – a ideia começava a seduzir-me – aqueles melómanos bem poderiam ser Rodolfo, Marcello, Colline e Schaunard reencarnados. Onde estariam então Mimì e Musetta? Haveriam de estar por ali. Quem sabe se não seriam aquelas duas meninas atrás do balcão... Num italiano muito martelado por um forte sotaque francês, meio staccato e nada cantabile, e parecendo ter adivinhado a minha pergunta, uma delas disse com um franco sorriso, «sì, mi chiamano Mimì… mais moi je m'appelle Madeleine.» (1) Vendo o espanto chapado na minha cara, acrescentou «mais croyez-moi, monsieur! … C'est tout à fait vrai!» (2) Fiquei atónito e emudeci. Mal se dissipou a surpresa e recuperei a fala, saiu-me de improviso «o soave fanciulla, ma tu sei proprio una strega!» (3) Mas a Madeleine não percebeu. Tive então de traduzir e explicar o porquê da exclamação, e tudo redundou numas boas gargalhadas.

Demorei-me por ali mais algum tempo, deliciando-me com o que ouvia e preparando-me para abrir os cordões à bolsa por uma mão-cheia de CD. A caminho da caixa, o meu olhar, nem de propósito, foi cair sobre a gravação de uma peça que há muito procurava. Saí radiante daquele pequeno reino da música, que me brindou com o arrebatador quinteto de cordas La Musica Notturna delle Strade di Madrid de Luigi Boccherini, o celebrado compositor do delicioso minuetto galante doutro quinteto de cordas, agrupamento de que foi ele o criador, com o opus 11 n.º 5. As más-línguas chamavam-lhe a mulher de Franz Joseph Haydn por causa das suas melodias doces e cantabile, opostas aos allegri vigorosos e sólidos do austríaco.

Toda a peça, que não chega aos dez minutos, é muito pitoresca e sugestiva. Há nela um imaginoso poema. A primeira parte, muito breve, é uma sequência sem melodia que evoca sinos a tanger. Soa em seguida um minueto cadenciado que sugere gente à entrada de uma igreja, talvez mendigos pedindo esmola aos crentes que vão entrando. Dentro da igreja é então o momento de rezar o terço, e a melodia tem a força de uma melopeia de litania recitada pela congregação a orar. À saída, é tempo de ouvir os cantores de rua, «los Manolos», numa melodia sincopada com ritmo de dança inspirada em sons típicos de Castela que, duzentos anos depois, ainda recria, desde o primeiro acorde, o ambiente descontraído e festivo dos tablados onde se exibe o garbo castelhano. Esta é a parte mais intensa da peça, e ao ouvi-la consigo ver distintamente um grupo de madrilenos a dançar ao sol poente. Terminada a dança, começa a ouvir-se uma marcha, cujo volume sonoro vai aumentando, até terminar o render nocturno da guarda da cidade. É noite fechada e a peça termina.

Luigi Boccherini (1743-1805)

É uma das pouquíssimas «opera con titoli» que Boccherini compôs, e é ele quem a apresenta num manuscrito autógrafo de 1780. «Este quintettino descreve a música que se ouve à noite nas ruas de Madrid. Começa com o toque às ave-marias e acaba com o render da guarda. Tudo isto não é tratado com o rigor exigido pelo contraponto, mas destina-se muito simplesmente a reproduzir com naturalidade as coisas que desejo representar. «Ave Maria delle Parrocchie» é o toque às ave-marias das igrejas paroquiais da cidade. A seguir vem o «Minuetto dei ciechi», o minueto dos mendigos cegos. Os violoncelistas devem pousar os instrumentos nos joelhos e imitar o som de uma guitarra, servindo-se de todas as unhas. Depois de uma breve pausa, o minueto inteiro é repetido e conduz ao «Rosario», o terço, que deve ser tocado sem medida fixa. Ao «Rosario» seguem-se uma passacaglia dos cantores de rua, «los Manolos», de novo com efeitos semelhantes aos de uma guitarra e, por fim, a «Ritirata». É preciso imaginar que este render da guarda nocturna é ouvido primeiro ao longe e deve portanto ser tocado piano para que mal se ouça; as indicações seguintes de crescendo e marcando devem ser estritamente observadas.» Mas em carta de 10 de Julho de 1797 enviada a Ignaz Pleyel, o seu editor em Paris, onde a sua música era muito apreciada pelo carácter galante, Boccherini afirma que «esta peça é totalmente inútil e mesmo ridícula fora de Espanha. O público jamais compreenderia o seu significado, e os executantes não seriam capazes de tocá-la como deve ser.»

Foi assim que, sem compreensão possível, este quinteto permaneceu inédito até aos anos vinte do século XX, ainda que se tenha tornado bastante popular em vida do compositor e este dele tenha feito vários arranjos. Ouvi-o pela primeira vez – lembro-me bem – num documentário sobre o excessivo Señor D. Francisco José de Goya y Lucientes, ignorando então que pintor e músico haviam sido grandes amigos. Foi no palácio da mecenática Condessa-Duquesa Maria Josefa de Benavente-Osuna, a última protectora de Boccherini antes de se mudar com a família para Paris em 1799, que ambos se conheceram e uniram numa amizade indefectível até à morte do compositor em 1805, na maior miséria. Ele que tivera por mecenas D. Luís de Borbón, Infante de Espanha, e Frederico Guilherme II, rei da Prússia. Desiludido, e talvez também porque simpatizasse com a causa republicana, Boccherini ainda tentou os favores de França e em 1799 enviou uma carta ao citoyen Marie-Joseph Chénier, irmão do malogrado poeta André Chénier entretanto guilhotinado, acompanhando os quintetos para piano dedicados à la Nation française. Em vão. Um ano mais tarde, ainda sem qualquer resposta, Boccherini queixa-se amargurado ao seu antigo editor parisiense, Jean-Georges Sieber: «Se não há em Paris ninguém que queira ocupar-se deste assunto, então fica esquecido e enterrado. Lamento que a Nação não tenha o prazer de conhecer esta homenagem que lhe dedico. Se esta obra não tivesse outros méritos que o de ser dedicada à Nação francesa, este parece-me suficiente para que o mundo inteiro a queira conhecer. Sei bem que a música é feita para falar ao coração do homem; e é o que me esforço por alcançar, se puder: a música, privada de sentimentos e paixões, é insignificante.»

Em 1927 os seus restos mortais foram trasladados para a basílica de S. Francisco da cidade toscana de Luca, onde nascera e que é também a cidade natal de Giacomo Puccini. À data da morte de Boccherini, Luca via brilhar a figura da Princesa de Luca e Piombino, Elisa Bonaparte, uma irmã de Napoleão com um notável talento para os negócios e para a administração da cidade e admirável mecenas das letras e das artes. Ficou conhecida como a Semíramis de Luca. Ao menos no eterno repouso, Boccherini teve mais sorte que Camões, que acabou na vala comum, destino fatal, aliás, de tantos outros génios. Em Viena, também Mozart teve enfim direito a um cenotáfio, no cemitério de Sankt Marx, onde o seu corpo – e apenas o seu corpo! – desapareceu para sempre numa gélida manhã de Dezembro.

Estas vidas acabam sempre assim, sepultadas em atroz miséria. Enquanto prosseguia a minha caminhada, ia cogitando inconformado que em duzentos anos – ou em dois mil –, o ser humano, no essencial, mudara muito pouco ou nada. Talvez, se acaso nascesse já com a serena sabedoria de um octogenário, descobrisse a salvação, o único passo possível para a perfeição. Mais sereno, entreguei-me a conjecturas sobre as estradas de Madrid à noite, no tempo em que Boccherini as calcorreava em busca de inspiração. Gratos devaneios. Os dele e os meus...»
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(1) Sim, chamam-me Mimi, mas o meu nome é Madalena.
(2) Acredite em mim, senhor. É mesmo verdade.
(3) Ó doce menina, mas tu és mesmo uma bruxa.

Em homenagem ao Dia Internacional da Música, instituído pela UNESCO em 1975, tendo os seus objectivos sido então apresentados por Lord Yehudi Menuhin:

«The International Music Day aims to encourage:
– the promotion of our musical art among all sections of society;
– the application of the UNESCO ideals of peace and friendship between peoples, of the evolution of their cultures, of the exchange of experience and of the mutual appreciation of their aesthetic values;
– the promotion of the activities of the International Music Council, its international member organizations and national committees, as well as its programme policy in general.»

RIC

10 comentários:

Oz disse...

Meu caro Ric, que passagem oportuna a minha por aqui hoje. Tudo óptimo, do relato à lembrança, sem esquecer a belíssima música de fundo.
Obrigado!

RIC disse...

Olá meu caro Oz!
Na tua perspectiva, há horas de sorte... Neste caso, não sei se será tanto assim, mas muito obrigado! Tentei ligar todas as partes. Talvez tenha resultado...
Ainda bem que te agradou! Fico contente!
Não tens de quê! Os prazeres são todos meus: o de escrever o édito, o de ler os comentários e o de responder-lhes!
Um abraço! :-)

Catatau disse...

Muito bem metido!
Ainda no outro dia lhe fizeram uma homenagem na Antena 2.
E a rive gauche fica aqui a matar. :)

RIC disse...

Olá João!
Muito obrigado, meu caro! Ainda que isto aqui não seja coutada à Mourinho... (Pronto, lá foi argolada!) Rsrsrs!
Gosto muito do que todos os meses encontro naquela publicaçãozinha em formato de CD que dá pelo nome de «Tons da Dois»...
Pois é! Eu sou um «gauchiste» inveterado... Rsrsrs!
Um abraço! :-)

Shadow disse...

Belíssima ficção! Bela homenagem!
Caiu que nem uma luva no Dia Internacional da Música.

Beijinho :-)

( Abençoadas liberdades poéticas, rsrsr! )

GMaciel disse...

:)
Ric, sabes que acabei por comprar a banda sonora do filme, "Master and Comander", só por causa desta peça? Ouvi-la nas Guarneri Homage, as colunas que mais fielmente reproduzem os instrumentos de uma orquestra, em especial as cordas, é um prazer que dificilmente se descreve por palavras. ( e agora imagina Mozart, Mahler, Paganini...)

:))))

"Gratos devaneios. Os dele e os meus...»"

E grata eu por os partilhares connosco.
jocas bem grandes

RIC disse...

Olá querida Susana!
Foi isso mesmo! Acertaste em cheio! Um texto que já estava escrito há «algum» tempo fez-me ver, de repente, que poderia servir para esta data! Apenas uns retoques... e pronto!
Quanto a «essas» liberdades poéticas... Rsrsrs! É mesmo verdade! O verbo ocorreu-me num instante de inspiração vicentina! Fartei-me de rir (que nem um maluco!) quando a palavra se formou no meu espírito: «escagabufar-se»! Rsrsrs!!! Há horas assim!
Um beijinho para ti também! :-)

RIC disse...

Olá querida Graça!
Embora este texto seja uma ficção (por muitos pormenores óbvios...), no entanto, a busca desta obra de Boccherini é bem real: não a procurei em Paris, mas em Amesterdão, onde acabei por encontrá-la. Mas à época não foi fácil: havia apenas duas ou três gravações, segundo soube, e só uma delas estava «mais ou menos» acessível... Acho que tive sorte. Gosto muito dela, bem mais do que do Minueto que é superconhecido! E não sou grande apreciador de peças só para cordas...
Essas colunas devem ser o máximo! Ainda bem para ti e para a música que gostas de ouvir!
Não tens de quê, minha cara! O prazer é todo meu!
Beijinhos também para ti! :-)

GMaciel disse...

Cá por casa o que mais se ouve é clássica e jazz e, também neste último estilo, é uma delícia deixarmo-nos envolver pelos sons de Coleman Hawkins, Stan Getz, Ben Wesbter, Duke Ellington and so on... os clássicos de 40, 50 e 60.

Pena tenho eu de não ter o mínimo talento para a música, acredita.
:(
;)
jocas grandes

RIC disse...

Desde miúdo que a música sempre tem sido a minha grande companhia e mesmo ajuda. Habituei-me a ouvir de tudo um pouco, e aos poucos o gosto foi-se apurando.
Creio que uma das minhas maiores frustrações foi não ter podido seguir uma carreira musical... Como tenho bom ouvido, acabei por me virar para as línguas. E parece-me que resultou... Gostava muito de ter sido pianista.
Beijinhos! :-)