quinta-feira, 31 de maio de 2007

II. A Lisboa e O Tejo


«Caminhava pela beira-rio e ia pensando nas relações que os habitantes das cidades estabelecem com os rios que as banham. Lisboa parece ser um caso especial, talvez só comparável à Istambul do Bósforo e do mar de Mármara, ou a São Francisco e à região da baía.

Foi na sinistra madrugada do incêndio do Chiado que me apercebi da real dimensão e do valor do sentimento que me une a esta cidade, quando o facto simples e banal de ser a minha cidade natal se revelou essencial ao espaço tangível de que hei-de sempre precisar para viver. Sem ele, uma boa parte de mim desapareceria em recordações esfumadas, como em cinzas desapareceram pelo fogo ruas elegantes e condignos edifícios.

Desde esse dia a nossa relação nunca mais foi a mesma. Em silêncio, em segredo, declarámos o nosso amor nos meus olhos marejados e nas suas ruas, pelas quais escorria ainda a água que a salvara de martírio maior. E nos longos anos de abandono que se seguiram, em que o Chiado permaneceu moribundo à espera de alento vital, partia-se-me o coração sempre que por ali passava e me sentia um reles mirone daquelas entranhas esventradas, postas a nu sem pudor nem reverência, num incompreensível campo arqueológico descomunal, escavado num átimo por algum louco. E o meu amor por Lisboa foi-se fortalecendo.

Com o Tejo, o lisboeta mantém uma relação dúbia. Vê nele o seu rio, mas não um riozinho qualquer, e tem-lhe por isso respeito e mantém a distância que o mar profundo impõe. Há séculos que a outra margem é a outra banda, expressão eloquente da lonjura e do perigo que a travessia sempre representou. Ainda hoje, vista da Ponte sobre o Tejo – aquela que nasceu refém de um nome, foi libertada por uma data, mas é e será sempre conhecida pelo lugar que ocupa –, toda aquela vasta extensão de rio-mar deslizando ao encontro do Atlântico concita a fantasias sobre a imensidão do mundo e a tal vontade dilacerante, mais imensa ainda, de ficar e querer partir. É das paisagens mais grandiosas que jamais os olhos me ofereceram, e sempre lamentei não poder parar sobre a ponte, quando voltava da praia pela tardinha que se ia fechando, para desfrutar de todo aquele deslumbramento ao sol poente, quando sobre o Bugio os alaranjados se vão carregando de um vermelho cada vez mais intenso.

E só de ter pensado na Caparica percorreu-me um arrepio tão forte que me arrancou do sonho acordado e me fez voltar à margem do Sena. Apesar daquele seu caudal grado, é um rio a uma escala mais humana, como o Tamisa em Londres, o Liffey em Dublin, o Reno em Colónia, o Tibre em Roma, o Moldava em Praga, o Vístula em Varsóvia, o Neva em São Petersburgo, o Moscova em Moscovo ou mesmo o Danúbio em Viena, Bratislava, Budapeste ou Belgrado.

O parisiense trata o Sena por tu, ao que nenhum lisboeta se atreverá em relação ao Tejo. Para o parisiense, o Sena é a Sena, que o Paris tenta reter junto de si, fazendo-a colear nuns quantos meandros em torno do seu corpo. Ela, porém, nem sempre cordata, cede à inconstância e de vez em quando obriga-o a arregaçar as calças, ao ameaçar extravasar do seu leito de núpcias. Souvent femme varie. Pois é. Já o Tejo é sempre o Tejo, mesmo quando ainda é el Tajo, aquele que talha na rocha o seu caminho, correndo para a foz onde, pouco antes de enfim se entregar ao vasto oceano, tem ainda um instante folgazão para cortejar e seduzir a airosa Lisboa.

Eis os eternos amantes míticos que um fado um dia juntou e consagrou. Este ambiente de namoro, ainda que marcado por fatais contrariedades, tem sido o cenário de histórias enternecedoras como «Die Nacht von Lissabon» e «Les amants du Tage». E ambas as formas de encarar as relações entre cidades e rios fazem sentido perfeito. Nada de essencial se perde ou ganha com a troca de ele por ela ou vice-versa. O género, pelo menos o gramatical, é uma falácia acabada, como muitas línguas bem demonstram.

Voltei costas ao Sena e fui andando para o Jardin des Plantes


RIC

10 comentários:

Anónimo disse...

Oi, Ric.
Olhe que ironia linguística: o Rio de Janeiro é uma cidade que tem um ´´rio`` no nome, mas não tem nenhum grande rio. Não que passe aqui pela cidade, pelo menos. Acho que, em parte, é por isso que nós somos tão ligados ao Mar e damos tanta importância às nossas praias. Pra suprir a nossa falta de contato com a água!
Por outro lado, não muito longe daqui, tá São Paulo, com o seu famoso (e poluído) Rio Tietê.
Acho que é a única cidade com um grande rio aqui no Brasil que pode ser comparado a esses que você mencionou... Apesar de vários desses se encontrarem em condições muito menos poluídas do que o Tietê!
De qualquer forma, as cidades que têm grandes rios realmente parecem ter uma História em comum junto com eles, né? É como se a cidade e o rio fizessem parte um do outro!

RIC disse...

Olá Carioca!
O «rio» de Janeiro foi um erro de avaliação da costa cometido pelos «achadores»... A costa era de tal forma recortafa que para eles só podia haver ali um rio qualquer...
Quanto ao contacto com a água, não vejo o menor défice na Cidade Maravilhosa: a soberba linha de costa diz tudo!
Manaus teve a sua época áurea porque estava na margem de um rio que despertava então as maiores fantasias...
Quanto ao Tietê, ele não faz exactamente parte da história da fundação de S. Paulo: era apenas a fonte de água necessária ao que os Bandeirantes se haviam proposto: seguir sempre para ocidente. E assim surgiu um «posto», um lugar de trânsito chamado S. Paulo de Piratininga...
'Tou certo uo 'tou errado? Rsrsrs!
Na Europa, por causa de tempos mais longos, creio que é de facto como dizes: sem curso de água - ou porto de abrigo - não havia como fundar uma povoação...
Abração, querido amigo! :-)

Anónimo disse...

Nem todos os lisboetas desenvolvem uma relação intensa com o seu rio. É como aqui no Porto. O Douro que corre estreito e escuro não faz as delícias de grande parte dos portuenses (que preferem a marginal nova-rica da Foz nova).

Eu, por exemplo, amo o Douro em toda a sua extensão, mas é por alturas do Pinhão que os meus olhos reflectem o brilho implícito no seu nome!

RIC disse...

Olá João M.!
É verdade, mas é sem dúvida lamentável... Até porque as cores que o Tejo exibe tanto ao longo do dia como conforme o tempo atmosférico são realmente um regalo para a vista! Quase sempre!
Quanto ao Porto, fiquei fascinado pelas tonalidades mais uniformes da cidade, como se estivesse numa cidade europeia mais a norte. E um rio escuro também tem o seu encanto...
Lindas palavras sobre o Douro do Pinhão! Parabéns!
Obrigado e um abraço! :-)

Anónimo disse...

Tenho de ler este texto com mais calma!
Abraço

RIC disse...

Olá Bernardo!
Já percebi que andas (quase) sempre cheio de pressa...
Cuidado! Olha que o «estresse» existe mesmo! Rsrsrs! :-)
«Just kidding»: lês quando te der jeito ou te apetecer!
Obrigado!
Abraço e um óptimo fim-de-semana!

lampejo disse...

Uma cidade banhada por um rio, tem sempre os seus encantos redobrados...

RIC disse...

Olá Lampejo!
Não há mesmo como um rio para tornar uma cidade um espaço bem diferente, mais próximo da Natureza.
Abraço! :-)

Anónimo disse...

Por muito que Lisboa se estenda para longe do Tejo, e curiosamente, é o contrário que nos últimos tempos tem sucedido, é impossível "ver e sentir" Lisboa sem o seu rio.
E estou contigo, quando te deslumbras com a chegada do Tejo ao mar.

RIC disse...

Olá João C.!
Ainda bem que gostaste!
Quando a paisagem é dominada por uma extensa superfície aquática, não há como fugir-lhe ou virar-lhe costas. É sobretudo por isso que a situação de Lisboa é única.
Ah esse deslumbramento!... Ainda hoje é tão grande como da primeira vez!
Abraço!