quarta-feira, 9 de maio de 2007

II. «Les derniers instants d'une année…» (2.ª parte)

«À saída das salas de cinema, mas não só aí, a vida põe‑se a imitar a antiarte amorfa, acentuando‑lhe os contornos que vai aguçando e sobrecarregando‑a de sombras que vai enegrecendo. Em tempos falou‑se de uma estética operária com a intenção certeira de denegri‑la, mas hoje, com o proletariado emboscado em esconsas ideologias ainda insepultas, quais variantes criogénicas da História, não há bem‑pensante que ouse classificá‑la. Não é já a malvadez em si que é gratuita, mas a própria morte enquanto corolário do sistema omnidestrutivo, como se o medo da morte seja o único valor vital a preservar. Milhares de milhões levam vidas estonteantes em correrias meteóricas que mal duram um milionésimo de nanossegundo, e tudo acaba por ter a mesma importância. Absolutamente nenhuma.

Um dia, garante o escritor, ainda havemos de nos admirar se acaso a fome, a doença, a morte, o cataclismo, o assassínio, a guerra ou o genocídio chegarem a ser sequer notícia. Os que nos devem informar não sabem informar‑se, são cada vez mais avessos à investigação e à leitura, mas pretendem dar um ar literato às míseras prosas que vão alinhavando, tornando‑as copiosamente palavrosas, impressionantes enxurradas de despropósitos. As novidades continuam a ser muito poucas, mas as notícias são cada vez em maior número. O descontrolado audiovisual vai promovendo os mais estranhos voyeurismos, e o sexo, por dá cá aquela palha, instituiu‑se como a obsessão magna do nosso tempo. Tanto dá para vender champôs como para torturar inocentes indefesos. O que marca os dias de hoje reside no poder discricionário de um temível artesão, o jornalista‑coveiro, que sem dó nem piedade arrasa vidas e causa a morte civil de incautos e ousados. Muito jornalismo deixou de ser a História do presente para passar a obedecer a uma patética teoria da coscuvilhice indecorosa e despudorada, tornando‑se uma prática promocional de futilidades e frivolidades, todas elas obnóxias e obscenas. Baboseiras, fantochadas e chalaças, tretas, lérias e pachochadas, petas, balelas e larachas, patranhas, conversas de chacha e paleio moderno, lança o escritor em cascata, em jeito de provocação, entre risos. Se calhar, é aqui mesmo que começa o terrorismo.

O Mark, sem saber muito bem o que fazer entretanto com as mãos que agitadas o traíam, interrompeu o relato para garantir que não se sentia atingido pela acérrima imprecação. Considerava‑se distante daquelas atitudes, que conhecia bem e às quais se sabia imune, desde que cedo optara pelo jornalismo cultural. Mas entrevi algum incómodo naquele brilho do olhar, e havia um certo sonsonete naquelas palavras. Também a publicidade, prossegue o escritor, estúpida e estupidificante, marginaliza quase todos por se dirigir a um só público – o que é jovem, belo e rico –, condenando os outros a esconderem a doença, a fragilidade, o envelhecimento e a pobreza e reduzindo‑os a uma insignificância que os emudece. Na moda, campeiam o narcisismo, o hedonismo e a infantilidade, propalados em desfiles por passarelas onde reina o baixo surreal. Quanto mais a beleza exterior é mitificada, mais a interior se vai extinguindo. É o marketing nosso de cada dia. E até o desporto, agora profissionalizadíssimo, paradoxo acabado e perfeito do nosso tempo, e única actividade que hoje diviniza o homem, nomeadamente o futebol, afirma o escritor carregando o advérbio de um tom sardónico, atraiu públicos que ainda não há muitos anos se dividiam por outras modalidades, por artes de palco populares e, já se vê, pelo muito trabalho, que o lazer é ainda hoje um fruto degustado por muito poucos. Enquanto indústria poderosa, tem demolido todas as que ousam fazer‑lhe frente e está cada vez mais ensarilhado em obscuros negócios da economia paralela, dos muitos submundos, da política escusa, de outras traficâncias e do mais que ainda se for revelando. Negócios são sempre especulações até o dinheiro entrar em caixa. Então, tornam‑se assuntos muito sérios, de muita dignidade. Esse mundo nunca o atraíra, declara. Sempre lhe parecera depender mais de uma esperteza meio atamancada que de uma inteligência seriamente comprometida. Um universo de probabilidades voláteis com um débil fundamento ético.



Shefford, England


Também a cultura descamba em mera actividade de lazer, logo, feudo de muito poucos, igual a mais um promissor segmento de mercado, um nicho muito apetecível, de que se vai apoderando uma minoria nova‑rica muito endinheirada, pouco instruída e muito inculta. Contradicção? Apenas mais uma… Pelo meio de tudo isto, continua o escritor, a corrente da riqueza passa por entre cada vez menos mãos, o que vem a ser uma vitória das democracias controladas por um escol de investidores, empresários e empregadores de vulto, glorificados representantes de um activíssimo empreendedorismo – afinal os patrões de todo o sempre –, que premeiam os fidelíssimos subalternos com estatutos de capatazes ou cães de fila, e fazem alarde do seu piedoso humanitarismo através de organizações ditas não governamentais, sombrias minas fornecedoras de súbitos e avultados proventos. Uns servem outros que são servidos e se servem. E estes, guardiães da ultraliberal avidez, acusam aqueles de preguiça pela velha via fácil de, a seus olhos, se justificarem, enobrecerem e amestrarem súbditos vergados. E livre‑se o servidor, o serviçal, o servo, de dar um passo que seja em defesa de ideais ou direitos, que logo o impessoal Estado de Direito lhe ferreteará no espírito, se não na própria carne, o labéu de criminoso. E poderá contar com a solidariedade de espíritos humanitários ou com a fraternidade de almas piedosas? Como, se ninguém manifesta a mais simples comiseração? Tudo acontece por muito amor e excelsa devoção à sacrossanta competitividade dos mercados, livres já se vê, que se transmuda em predação tubarónica. É que tudo fomenta a rivalidade assanhada logo a partir do berçário, da creche, do infantário, do jardim‑escola. São os chamados ciclos de crescimento da economia a mascararem outras tantas inconstantes revoadas de exaustão capitalista, as quais farejam sem cessar as presas que hoje espoliam e amanhã enxotam e abandonam exangues. As poucas ideias incham e minguam ao ritmo das convulsões das omnipotentes cotações bolsistas, quais arritmias crónicas de apostadores compulsivos, sempre cheios de muitos nervos. É este o rumo do vendilhismo impudico.»

[Termina lá para sexta-feira…]

RIC

1 comentário:

RIC disse...

Ninguém gosta que as verdades lhe fustiguem o rosto... Demasiado brutal...
Ou estarei enganado?...