quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

I. «Por Uns Olhos Glaucos» (2.ª parte)


As minhas mãos voltaram a percorrer aquele corpo que horas antes me pusera em brasa, alucinado. Aos poucos, ia‑me lembrando cada vez melhor e com mais pormenores, mas com afinco fazia por esquecer, para que tudo recomeçasse do zero absoluto e a descoberta fosse perfeita. Algures havia ainda uma réstia do doce sabor daquela boca que se mantivera intacto, e um beijo mais longo redescobriu‑o e recuperou‑o, pondo em marcha o processo de interdição da mente. O pescoço, os ombros, o peito, o ventre, as ancas, as nádegas, as coxas, aquelas coxas perfeitas e firmes, cuja beleza de linhas e volumes se oferecia aos meus olhos e às minhas mãos como ansiado veneno, todo aquele corpo me lançou numa devassa desabrida.

Não é só na lareira que o lume se ateia e arde vivo. Colcha, edredão e lençóis voaram pelo quarto para bem longe, levados por um vendaval de fogo que soprava dos nossos corpos enlaçados à luz suave da entremanhã. Nem lábios nem mãos queriam obedecer. Consumar ou interromper ali mesmo o desvario era a hesitação aflitiva, quase asfixiante. Ainda lancei um olhar enviesado ao relógio e entrevi os ponteiros, mas fechei os olhos para sentir melhor o aroma intenso por apenas mais um instante. Um só.

E toda a sensatez naufragou naquele mar de esmeralda sem fundo, arrastada pela vontade férrea de uma âncora impiedosa. Afogou‑se sem sequer se debater. Os nossos corpos envolveram‑se numa dança sincopada e revoltosa, coreografada por dois puros instintos em delírio, cada um antecipando o passo que o outro daria em seguida. Abençoados os que a morte arrebata em plena dança. Decerto acordarão anjos bailarinos no paraíso. E mais uma deliciosa descarga eléctrica, potentíssima, deixou‑me em curto‑circuito intermitente todos os músculos retesados, da cabeça aos pés, ora contraídos em espasmos de dor indizível, ora relaxados em vagas relançadas de supremo prazer. Algo que se repete ao longo da vida e que nunca é igual. Ainda os torsos arquejavam ao ritmo do desejo saciado, ofegantes, e já eu me obrigava a lançar um novo olhar ao relógio.

Eram oito e meia. Por muito contrariado que me sentisse e com uma vontade crescente de adiar a partida, sabia que não poderia nunca fazê‑lo. Não queria de todo sair dali, mas era em Roissy que deveria pensar, onde tinha de estar por volta do meio‑dia. Não tinha mais tempo. Tantos nãos a minarem‑me o bem‑estar. Se chegasse atrasado ao aeroporto, arriscar‑me‑ia a ficar em terra, com um rol infinito de consequências nefastas entre as mãos, o que seria bem pior que aquela angústia sempre crescente. Uma estranha raiva começava a apoderar‑se de mim e tive de me dominar com esforço, se não queria começar o dia com um acesso de mau humor, que só me faria tropeçar nos próprios pés e confundir os passos que se impunham. Fixei aqueles olhos de esmeralda, e o efeito foi terapêutico. Muito a contragosto tinha de abandonar aquele corpo, deixar aquela cama, tomar um duche, vestir‑me, acabar de fazer a mala, pagar a conta, despedir‑me da Madame Rivier e deixar o hotel. Então sim, à mesa do pequeno‑almoço, talvez houvesse ainda tempo para conversar. Se acaso alguma conversa fosse ainda possível. Ou necessária.

Na place de l'Opéra despedimo‑nos atabalhoadamente como dois adolescentes confusos, depois de um pequeno‑almoço em que falámos mais do que comemos. O ar da manhã, soalheira e glacial sob um céu todo azul, era transparente a uma luz fria e crua que feria os olhos. Já conversáramos o que o tempo nos concedera e lamentáramos que tivesse sido tão pouco. Já trocáramos números de telefone e endereços postais e electrónicos para um possível futuro. Já faláramos de Lisboa, que afinal até conhece razoavelmente. Já percebêramos que poderíamos entender‑nos bem, talvez mesmo muito bem. Já deploráramos ter‑nos conhecido na última noite, à beira do fim do tempo, quais condenados a olhar sem ver, a provar sem saborear, sem consolação possível. «Partir c'est mourir un peu» (1) é uma óbvia verdade à Monsieur de La Palisse, mas não era por saber isso que a mágoa esmorecia.

Quis que o autocarro partisse logo, para que aquele desconforto acabasse de vez. Começava a ficar inquieto. Acanho‑me com despedidas íntimas em público, sobretudo se antevejo que possam ser entusiásticas e emotivas, por serem exteriorizações que suporto mal. Não me desagradam tanto porque sejam excessivas, o que é natural e sadio, mas porque a terceiros parecem insinceras, falsas até, e estes aparentem querer sempre escarnecer da expressão alheia de sentimentos por a considerarem um exibicionismo pueril e bisonho. Isso inibe‑me.

O autocarro estava estacionado do lado da place Diaghilev e do boulevard Haussmann, atrás da Ópera. Passados minutos infindos, arrancou enfim e, por trás do vidro, consegui soltar‑me um pouco mais e acenei uma desajeitada despedida sentida. Pela primeira vez, naquele instante o verde‑mar era a sua própria negação. Era tudo menos esperança. Custou‑me tanto desviar os olhos daquele olhar meio perdido...

E vieram-me à memória uns versos de Sophia: «Em fundo glauco de laguna ou vidro / E um pouco assim em nossa vida o duplo / Espelho sem perdão do não vivido / Caminha destinado a ser perdido.» (2)
_______________________
(1) Partir é morrer um pouco.
(2) Sophia de Mello Breyner Andresen, Ilhas, "Veneza".

RIC

18 comentários:

Luís disse...

(Vim para dizer que direccionei para cá um link de L'Avion Rose, mas isso já quase de nada vale porque este texto é bonito, muito bonito... Superlativamente bonito! Abc,)

RIC disse...

Olá Luís! Bem-vindo à minha Babilónia! É um bocado como eu... :-)
Obrigado. Pelo link e por teres gostado.
Parece-me que começa a haver mais leitores de Francês... E isso agrada-me!
Um abraço amigo!

Tongzhi disse...

É de facto um texto muito bonito... intenso... quase uma pintura!
Abraço!

RIC disse...

Muito obrigado, Tongzhi! Ainda bem que gostaste.
Um abraço! :-)

Anónimo disse...

Só me ocorre uma único adjectivo...
Soberbo!

:-)

RIC disse...

Não é preciso subirmos tanto, Carla! Muito obrigado! Basta-me saber que gostaste do episódio.
Já agora, deixo-te um desafio: imagina que te dão o episódio para ler; não sabes quem o escreveu nem em que contexto ele foi escrito. Não há quaisquer fotos a dar qualquer orientação de leitura. Tens apenas o episódio para ler.
A pergunta é simples: identifica ambos os protagonistas/ambas as protagonistas/o protagonista e a protagonista...
A formação em Matemática decerto deixou-te o bichinho voraz de resolver problemas/enigmas.
Fico à espera!
Beijinhos! :-)

Tongzhi disse...

Ó menino Ric! Cá o "je" também é de matemática... Não percebo porque é que o desafio é só para a minha distinta colega Carla :))))

he he he

Agora não respondo ao desafio, amuei!

RIC disse...

Pelos deuses do Olimpo que alto moram (Homero)! Olhem-me só para isto! Agora tenho de aprender a lidar com os ciúmes interbloguísticos... O que é que eu hei-de fazer?! Só posso dizer, meu caro Imperador, que nunca poderia desafiar uma Alteza Imperial... (Rsrs!) Mas se ela se dignar participar, é naturalmente bem-vinda. Se lancei o desafio nesta página, sabia que outros - e não apenas a Carla - o leriam, «né»?...
Já tens a solução? Isso é que me interessa! Os amuos passam... :-)

Tongzhi disse...

Amanhã, no meu passeio matinal de elefante, vou pensar nisso! :)
Hoje, outros valores mais altos se "alevantam"
he he he

RIC disse...

Pois é... Quando os valores se «alevantam», têm mesmo muita força... (Olha-me só a brejeirice para a qual me inclino tão facilmente!...) :-)
«Passeio matinal de elefante»?! Decerto não estás em Pequim! Mas sim em Banguecoque! (Prefiro a grafia inglesa por ser mais sugestiva - «Bang-cock»...)
Então um bom passeio para ti e uma meditação ainda melhor!
Um abraço amigo!

Anónimo disse...

Olá, Ric!

Antes de aceitar o desafio, um apontamento: Pessoalmente é irrelevante o sexo dos protagonistas tanto em episódios de histórias como reais.

Passemos ao desafio...

Ao ler o episódio, não tenho dúvidas que um dos protagonistas é do sexo masculino. A morfologia assim o indica. Portanto a segunda opção está excluída.
Em relação ao segundo protagonista, a dúvida instala-se.
Podendo haver um ou outro pormenorezinho que nos leva a uma suspeita mais fundamentada s/ a sexualidade do outro interveniente, aventuro-me a dizer que fica ao critério de quem lê. Talvez, inconscientemente, segundo a sua própria orientação sexual.

Ric, desafio superado? :-)

Já agora se me permites, uma palavrinha ao caríssimo colega de matemática.
Tongzhi, como não sou egoísta, «passo a bola» para esse lado ;-)
Bons passeios com ou sem «alevantamentos» :-)

RIC disse...

Eu sabia, Carla, eu sabia! Superaste a tarefa com uma perna às costas! Outra coisa não era de esperar: a formação específica em Matemática dá esse golpe de vista para certos «pormenorzinhos».
A minha intenção foi exactamente a de não dar, no texto, quaisquer elementos que permitam uma identificação óbvia do género do/a outro/a protagonista. Como dizes, deverá ficar ao critério do leitor.
Do meu ponto de vista de leitor, fazes uma excelente análise!

Muito obrigado! Gostei muito deste teu contributo!
E obrigado também pelo considerando inicial! Bem hajas!

Um excelente fim-de-semana! :-)

Anónimo disse...

Ric, meu querido amigo
Estaria aqui "muitas linhas" a comentar estes dois posts, mas mais este segundo, mais intenso, mais vivido e muito, muito mais coincidente com momentos passados e muito "presentes".
É muita beleza, até a Sophia teria gostado, estou certo.
Curiosamente, e ao contrário da Carla, nunca se me pôs o problema dos géneros, porque razão? (parece-me tudo demasiado evidente, mas até poderei estar enganado...).
Quanto a esses grupinhos "matemáticos", também já estou com ciúmes, mas contento-me de me auto prpôr para o grupo dos "afrancesados".
Um enorme abraço.
João

RIC disse...

Muito obrigado, João! Fico muito contente com os efeitos provocados pelo episódio.
Quantos milhões não terão vivido momentos semelhantes... Não foi a Carla que levantou o problema; eu é que lhe lancei o repto, porque queria saber se a minha «estratégia textual» surtira efeito. Pelos vistos, também no teu caso funcionou: quando dizes que tudo te parece por demais evidente, estás a dar conta da tua leitura, quase uma projecção inconsciente...
Quanto a ciuminhos de meia tigela, só tenho a dizer que - tanto quanto sei - a Matemática é aqui representada por um par português, já que o Captain é inglês... E eu aprecio muito a diversidade! A todos os níveis e mais algum!
Já quanto aos «afrancesados», eles são em maior número e até contam com falante nativo no seu seio - o Joël, um canadiano de Montréal.
Portanto, nada de capelinhas aqui, okay? (Rsrsrs!)
Continua a deliciar-te nestes primeiros dias de Janeiro! Sei que mereces! :-)
Um abraço apertado!

tiago disse...

bem, depois de tanto dito e tão bem, só quero (simplesmente) participar-te a impressão de beleza que o teu texto deixou em mim. :)

RIC disse...

Bem-vindo, Tiago! E muito obrigado! O teu comentário é conciso, mas nem por isso menos importante para mim.
Um abraço! :-)

Anónimo disse...

Eu sabia que não nos ias defraudar as expectativas quando nos fizeste esperar pela segunda parte. A intensidade que pões nesta 2ª parte, supera o primeiro texto.

Ciúmes à parte, enquanto lia o texto antes de saber do desafio lançado à Carla, pensava exactamente nisso. Independentemente do género do protagonista/autor, transborda sensualidade.

RIC disse...

Muito obrigado, querida Karla!
Quando pensei em editar este episódio aqui, percebi que era longo demais para não ter de o dividir em duas partes. E calhou, de facto, ser esta a partição ideal, a meu ver, é claro. Mas parece que os leitores acharam o mesmo... :-)
Quanto à sensualidade, é verdade, tens razão: fiz de propósito... (Há coisas que um autor não deve revelar/confessar/admitir... Mas também não sou escritor... Tudo bem!)
Beijinhos, minha querida!