segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Da Guerra Colonial (1.ª parte)

Naqueles anos, em que tudo o que me rodeava ia ganhando todos os sentidos, fora já várias vezes com a minha mãe ao cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, donde partiam aqueles paquetes que me atraíam tanto e cujos nomes decorava para depois baptizar versões desenhadas: o Vera Cruz, o Infante D. Henrique, o Santa Maria, o Príncipe Perfeito, o Amélia de Mello largavam atulhados de homens fardados, soldados em devir, que deixavam no cais muitas mulheres aflitas, umas mais velhas, outras ainda muito jovens, que choravam, gemiam, desmaiavam, recuperavam os sentidos para de novo os perder, e iam acenando sempre com lenços muito brancos até o navio soltar amarras, zarpar Tejo fora e desaparecer pelo fim da tarde no horizonte, já bem ao largo, ofuscado pelo sol que se punha entre dois gigantescos pilares que, dia a dia, iam emergindo do fundo do Tejo e se alçavam ao céu como a implorar piedade.

Por entre aquelas mulheres, iam cirandando umas senhoras muito aperaltadas e muito atarefadas, que pareciam não querer tocar sequer com um dedo nos fios das vidas que ali se desenrolavam. Eram madrinhas de guerra, disse a minha mãe. Pertenciam ao famigerado movimento nacional feminino, vim a perceber mais tarde. Procurando amansar as emoções à flor da pele, iam prometendo à soldadesca atarantada visitas de apoio e encomendas das famílias e ofereciam‑lhes cigarros. Entre dentes, rosnavam censuras ao mulherio por ameaçarem quebrar o ânimo dos homens com tanta choradeira. «Vão servir a Pátria! Deviam estar orgulhosas!», ouvi duas ou três mais entradotas vociferar, de bocas escancaradas onde faiscavam repelentes antemolares e caninos de ouro. Mas o mulherio, entregue àquela hora de aflição máxima, não queria nada com as crenças, sabenças e sentenças daquelas sáfaras bem‑postas. As senhoras estariam imbuídas do espírito de uma missão qualquer que eu não podia conceber e, de cara lavada, andavam inquietas de um lado para o outro. Contudo, as mais jovens, não muitas e que eram as mais calmas, pareciam saídas de uma revista de modas. Quase todas de fato de saia e casaco, a que decerto chamavam «tailleur», exibiam com decoro uma abastança regrada em discretas blusas de seda, colares de pequenas pérolas subidos ao pescoço e diminutos brincos colados aos lóbulos das orelhas. As malinhas de mão condiziam com os sapatos, estes com saltos em bico de lápis e aquelas espalmadíssimas, como se um tractor as tivesse cilindrado. O que era mais ostensivo, contudo, eram os penteados e as maquilhagens. «Mises en plis» ou permanentes a quente enformavam cabelos armados com rolos, ripados, tufados e sustidos com muita laca. Nas caras havia pó‑de‑arroz de tonalidades ligeiramente bronzeadas e nos lábios, batom de tons acastanhados. Algumas, poucas, exibiam nas pálpebras uma sombra verde ou azul, muito esbatida. Seria tudo isto muito bonito de se ver e apreciar, não fora o confrangedor cenário em que decorriam aqueles desfiles. Rever de memória todas estas imagens revela‑se um reencontro mais fácil e imediato com as melhores cenas do melhor cinema de Fellini do que com aqueles embarques de infortúnio à beira‑rio. Tudo aquilo era assustadoramente espalhafatoso e acabrunhante.

Chorariam também os soldados, agora que já estavam longe da vista das mulheres? Diria que não se mo perguntassem, porque um homem nunca chora, repetiam‑me a torto e a direito. Mas achava que sim. E as mulheres, seria aquela a última vez que os viam? A muitos, decerto, pelo menos assim, tal qual partiam. Os que regressaram, ao longo de quase um infindo decénio e meio, nunca mais foram os mesmos que se haviam despedido com olhos brilhantes e joviais. Um primo, que suou a juventude num infecto mato, dois anos depois de ter partido com um sorriso inocente e ingénuo no olhar, voltou irreconhecível. Ora passava dias e dias trancado no quarto a chorar baixinho, como se uma dor funda e sem nome o afligisse sem alívio possível, ora atravessava delirante e descontrolado semanas a fio, sonhando acordado com impossíveis negócios irreais que nada tinham a ver com a engenharia civil que ia estudando. Poucos anos mais tarde, ainda com o curso por acabar, bebia a toda a hora, e os dias de choro baixinho foram cedendo a vez a acessos coléricos que se abatiam súbitos sobre o incauto mais próximo. Hoje arrasta a velhice precoce pelos corredores de um asilo de alienados, sem nunca ter vislumbrado um porto seguro nos muitos anos em que navegou errático por uma vida truncada de sentido.

Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres com um choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperação e frio medo
De já não nos tornar a ver tão cedo.

Nós outros, sem a vista alevantarmos
Nem a Mãe, nem a Esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
(1)

Num império a manter a todo o custo, os sobreviventes estiveram muito para lá do humanamente suportável. Por cá, foi o silêncio, a dor, a resignação e a morte chorada entre dentes com a raiva da incompreensão. Cheguei a pensar, quando as leituras liceais me fizeram conhecer o Épico, que a História afinal podia repetir‑se, uma ilusão conveniente ao ser humano, a qual lhe conferiria poder sobre a sua condição: quanto mais os acontecimentos se assemelhassem, maior seria a impressão de domínio sobre o destino ou o fado. Mas era apenas uma ilusória coincidência.
____________________________

(1) Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, IV-89 e 93.

[Na Quarta‑feira, a 2.ª parte.]

RIC

16 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro Ric
poderia ter esperado pela 2ª.parte, mas não o fiz, pois como imaginarás, isto para mim, daria pano para mangas...
Embora eu já seja da época das partidas por avião, apesar de tudo menos dramáticas , e sem as famigeradas senhoras do MNF.
Não resisto porém, a contar um pequeno episódio, e peço desculpa do abuso deste espaço, que é teu.
Certo dia recebi na minha Companhia a visita da "chefona", a Luísinha Supico Pinto, muito airosa, muito africana...
Recebi-a na pista improvisada no mato para os aviões, e querendo aproveitar algo de útil de tão ilustre visita, referi-lhe a pequenez da pista, mas saíu-me isto: "A senhora sabe, a nossa picha é demasiado curta...". Os meus oficiais desataram a rir, eu fiquei sem saber o que dizer, e a senhora deve ter pensado que eu estava a gozar, pois nem saiu da "picha", disse 2/3 banalidades e abalou.
Só depois ri à gargalhada..Um abraço.

RIC disse...

Olá João! Muitíssimo obrigado por este magnífico episódio! Rsrsrs!
Que monumental «lapsus linguae»!!!
Que cena incrível! A LSP deve ter ficado verde e furibunda, mas sem se desmanchar, é claro!
Deve ter dado à sola depressa, porque coisas curtas não seriam da sua preferência... E depois de uma tão cândida e sincera confissão...
Rsrsrs!!!
Que delícia!
Abraço! :-)

Tongzhi disse...

Magnífico quadro sobre "uma partida para as colónias". Eu vivi isso a "dois carrinhos". Poucas vezes fui ver uma partida dessas, posso até precisar o número - duas vezes. Uma delas despedir-me de um familiar chegado. Dessa partida tenho uma lembrança muito dolorosa. Uma mãe que, chorando "em silêncio", abanava uma vara com um rabo de raposa presa no topo.
A outra é uma outra história bem mais feliz. Um dia contarei o que fui lá fazer com a "generala" :) :)

RIC disse...

Olá Tongzhi! Em miúdo, vivi várias partidas destas. No bairro onde morava havia uma quantidade razoável de mancebos filhos de amigas e conhecidas da minha Mãe. Assim, de vez em quando, lá estávamos nós em Alcântara... Que me lembre, só um ficou por lá. Contava-se que a urna viera vazia, com qualquer coisa lá dentro...

Fico em pulgas para saber de ti «mais» a generala! Rsrsrs! Deve ser o máximo!
Um abraço! :-)

Anónimo disse...

A minha irmã era uma dessas madrinhas ( a do segmento das mais novas...)!
Quantos aerogramas (lembram-se dos aerogramas?...) ela recebeu!
Para mim era uma delícia ir esperar o carteiro e receber os aerogramas e...abri-los, lê-los avidamente e ter um gozo dos diabos na decifração daquela escrita cheia de erros e mal amanhada e depois catalogá-los e dar o meu parecer sobre as respostas a dar!
Foi o meu primeiro " trabalho" a sério! rsrsrs!
Depois, dei conta que havia mortos!
E sucedeu até que eu tinha "morrido" em combate!
Foi assim: aparecem dois militares em minha casa, chamam o meu pai de lado, e informam-no que o filho - eu...- tinha morrido!
O meu pai fica espantado com a notícia e após alguns momentos de silêncio, um dos militares informa-o que dentro de quinze dias a urna chegaria a Portugal!
O pai ficou mais espantado ainda e disse: nada disso, vou já buscar o corpo do meu filho e vem já para casa!
Ripostam eles que isso seria impossível!
Replica o pai: vou já para lá e ai de quem se me oponha! Dentro de uma hora ele já está cá!
Os militares, pensando que o pai se tinha passado, agarram-no, encostam-no à parede: tenha calma, tenha calma...nós tratamos disso tudo!
O pai: mas que porra, eu vou já para lá e em vinte minutos estou no colégio e trato do assunto, não os quero metidos nisso...isto é assunto de família!
Colégio? Qual colégio? o seu filho morreu em Angola!
Bem: conclusão: o meu pai tinha o nome bastante parecido com um outro, nosso vizinho, e por deficiente informação os tais militares foram bater à nossa porta!
De facto tinha morrido um conterrâneo: por acaso uma jóia de rapaz e que só muito, muito mais tarde vim a saber que teria morrido num acidente de viação em Luanda!
Nunca mais esquecerei o seu funeral!
Tantos pesadelos isso me provocou na minha adolescência! Aqueles tiros de salva no funeral...brrrrrrrr!!!
E quando ganhei uma certa consciência politica, decidi que quando fosse "incorporado", iria "fugir" do país, e já tinha tudo preparado para me refugiar na Suécia...
Rais parta o vinte-e-cinco do quatro que náo me deixou ir fazer a "minha guerra" com os suecos, loiros,altos, lindos de morrer.. rsrsrsrsrsrsrs!!!

RIC disse...

Olá Aracnauta! Apreciei muito, acredita, o texto deste teu comentário! Sabe muito bem verificar que há quem tem memórias semelhantes para partilhar.
As madrinhas de guerra até que nem eram o elo negativo daquela guerra, de todo! Pelo contrário, como bem referes, eram uma companhia de privilégio para muitos. Conheci algumas, do dito segmento mais jovem, que se dedicavam realmente aos afilhados. O mal estava no folclore do MNF...
Coitado do teu pai! Que raio de situação! Ainda hoje ocorrem situações semelhantes, como pude ver outro dia a propósito de soldados norte-americanos no Iraque...
Também eu pensava que daria à sola, se a minha vez chagasse. Os meus amigos mais íntimos achavam que eu não era patriota... E eu ria-me... Achava que o império não me dizia nada. Mas ao contrário de ti não fazia a mínima ideia para onde iria.
Pois é, meu caro, tens toda a razão! Desde quando é que se pode admitir que uma Revolução dê cabo dos nossos sonhos altos, espadaúdos, louros e de olhos azuis!... Que maldade! Que golpe do destino! Que frustração! Olha só o «casamento» de estadão que poderias ter feito! Não há direito!
Rsrsrsrs!!!
Espero e desejo que o precalço histórico não te tenha impedido de «contactar directamente» com as belezas nórdicas - algumas verdadeiras visões apolíneas...
Rsrsrs!
Um abraço, meu caro! Obrigado!
:-)

lampejo disse...

Bela descrição, sem duvida. Ao ler o texto, quase nos sentimos presentes naquele cais de embarque.
Eu cá não sou desse tempo, felizmente, mas houve na minha família quem tenha vivido directamente esse episódio.

Anónimo disse...

Por momentos fui «conduzida» até Alcântara...
Sublime descrição!
Nem o pormenor da maquilhagem das senhoras, escapou. «Brutal»...!
Venha a 2ª parte!

Boa semana.
:-)

RIC disse...

Olá Lampejo! Estou em crer que praticamente não haverá família portuguesa que não tenha sido tocada mais ou menos profundamente por ter um familiar na guerra colonial...
Obrigado por considerares a descrição vívida!
Abraço! :-)

RIC disse...

Olá querida Carla! Estava mesmo a precisar de uma reacção feminina a esses pormenores! Não calculas o gozo que me deu, quando escrevi este texto, procurar na memória e em fotografias da época os elementos que depois me permitiram escrever aquelas linhas...
Eu era miúdo, mas aquelas partidas em Alcântara impressionavam-me bastante. De uma das vezes, o choque do que vi - e terei percebido - foi tal que caí doente. Aí, a minha Mãe só me levou lá mais uma vez...
Ainda bem que te agradou!
Uma boa semana para ti também!
Beijinhos! :-)

Anónimo disse...

Desculpa Ric
venho apenas rectificar um nome que não está correcto, no meu comentário. A presidente do Movimento Nacional Feminina era Cecília e não Luísa Supico Pinto, a Cilinha, como ela queria que os soldados a tratassem...

RIC disse...

Olá João! Tens razão: a Cilinha! Nomes são nomes, não devemos mudá-los. O retrato da figura, esse é intocável...
Obrigado! :-)

MrTBear disse...

Olá RIC! (Paz?)
Já disse ao Pinguim que gosto muito destas histórias. Eu vivi uma parecida em 1970, quando fomos para o outro lado do mundo, para o mais distante dos territórios ultramarinos. Nada de cuidado, mas foi a primeira e última vez que vi a numerosa família paterna toda junta LOL.
A minha sogra (ex-sogra) conta histórias espectaculares de quando ia ver os navios partir. Apesar de nunca se ter ido despedir de ninguém, ela e as amigas iam acenar com lenços brancos e piscar o olho aos militares que, segundo elas, até ganhavam um outro ânimo. Cá para mim, era mesmo por não terem de as aturar LOL.
Houvesse alguém que recolhesse estes testemunhos todos e contava-se a verdadeira históriada guerra colonial. Acho eu.

Anónimo disse...

Este relato está muito bonito! É de um pormenor e de uma sensibilidade extraordinárias.
Além das deliciosas descrições (onde, por momentos, senti o cheiro a Tokalon e a Bien-Être por entre os vestidos caveados, os tacões "à piorra" e os penteados de "banana"), há uma luz emocional muito nítida sobre esses episódios eternizados do Estado Novo.
Que dizer de consolação a uma sociedade que enviava os filhos para um ritual sacrificial que nunca entendera?!
Eu livrei-me facilmente. Andava na quarta-classe quando se deu o 25 barra quatro. Contudo, todos os meus tios foram ao ultramar e desfiam-me histórias de guerra quando calha e eles estão para recordar. Guardam religiosamente os aerogramas (Lobo Antunes tb os guardou e já deu no que deu!) trocados com as namoradas, com as minhas futuras tias e até comigo!
Há, todavia, duas coisas que em todos eles provoca sorrisos cúmplices: as lavadeiras e as farras masculinas de quartel (que deviam parecer as festas da mangueira, claro!).

Fico à espera de mais uma descrição queirosiana. Estás tramado - aguçaste o apetite! ;)

RIC disse...

Olá Teddy Bear! Eu tento estar sempre em paz... E tu, também? Rs!
Pois é, também há esse lado menos dramático das partidas de Alcântara, protagonizado pelas meninas apostadas em catrapiscar algum magala... Rsrs!
Uma viagem marítima para Timor havia de ser uma autêntica aventura, quase ao estilo dos Descobrimentos...
Concordo contigo. Uma recolha de testemunhos de outros aspectos da saga (não apenas dos combates) daria uma imagem mais «redonda» daqueles tempos de chumbo...
Muito obrigado, meu caro!
Um abraço! :-)

RIC disse...

Olá Catatau! Muito obrigado pela tua apreciação! Palavras simpáticas, as tuas!
Eu também me livrei com alguma margem de segurança: estava a acabar o antigo 5.º ano (actual 9.º) quando nasceu «o dia livre e claro»...
Também eu troquei aerogramas com vizinhos de quem me despedira em Alcântara e que já nos anos 70 passavam dias nada fáceis em Angola...
Quanto às farras de caserna, não tenho - hélas... - quaisquer elementos que me permitissem escrever alguma coisa de jeito... Mas haviam de ser «altamente»!... E por aqui me fico... Rsrs!
Seria muito bom se as minhas descrições se aproximassem das queirosianas... Mas Eça é sem dúvida uma referência e, em alguns aspectos, uma influência forte. Tenho consciência disso ao ler alguns textos em que já não pego há muito...
E quanto a estar tramado, olha... Paciência!... De uma forma ou de outra, estou sempre...
Um abraço! :-)