Que ao título A Boy's Own Story de EDMUND WHITE não corresponde o português – A Vida Privada de Um Rapaz – é questão pacífica. Transpor para português um registo sui generis do inglês norte-americano é tarefa difícil, que é levada a muito bom termo por José Vieira de Lima, resultando num texto em português atraente, literariamente válido. Impõe-se uma objecção ao título original: as histórias contadas não provêm de um narrador adolescente hic et nunc, mas da memória de um narrador adulto. So much for A Boy's Own Story… O título português é, pois, mais verosímil porque mais consentâneo com a verdade ficcional.
Um narrador anónimo (autobiográfico) é localizável algures na idade adulta, a partir da qual procede a excursos retrospectivos em busca de um tempo perdido: a adolescência. O objectivo desta revisitação é óbvio: encontrar as explicações, as justificações de que necessita para seu próprio governo (e do seu narcisismo).
Basicamente, há uma obsessão: a necessidade, por vezes pungente, de reconhecimento social que, à norte-americana, se rescreve "ser popular". Com alguma filosofia à mistura, o narrador afirma que "ser popular equivalia a tornar‑me uma personagem, talvez mesmo uma pessoa, pois se ser é ser percebido, então ser percebido por muitos olhos e com inveja, interesse, respeito ou afeição [atente-se nos pólos da gradação], é existir mais densamente, mais articuladamente."
Depois, há a aprendizagem de ser-percebido: "aprendi que o amor ou pelo menos a amizade têm de ser conquistados com prendas e agrados, que há jeitos e artes (escutar, sorrir, lembrar, lisonjear)." Entretanto, há a vontade de cura para o supremo mal: "Se a minha homossexualidade se devia a um excesso de presença feminina na família (...), então a melhor maneira de corrigir esse desequilíbrio seria entrar para um mundo totalmente masculino. A fim de me tornar um heterossexual, decidi que iria para um colégio interno só para rapazes." Mas estas são as palavras de um narrador adulto descrente de teorias ou práticas terapêuticas. Vem, em socorro do adolescente, o shrink da praxe. E para que do caos surja a ordem, eis quase uma isotopia, muito bem organizada a partir da oposição heterossexualidade/homossexualidade masculinas: negócio/arte, coisas/pessoas, mulheres/homens, pai/mãe, desportos/livros, responsabilidades/sentimentos e dinheiro/ amor. Tudo muito bem arrumadinho.
Um anacronismo insustentável surge pela voz do narrador que, com quinze anos e como se iluminado, debita um Michel Foucault avant la lettre, numa desvairada sinopse da tese da História da Sexualidade. So much for the boarding school for boys only – Eton, de seu nome.
O romance, em que a adjectivação amiúde se descontrola, termina em queda. Proliferam as referências culturais – a propósito e a despropósito – e as efusões líricas, de gosto literário duvidoso e extensão desmedida. Um texto mais enxuto teria, seguramente, a ganhar em qualidade literária e valor testemunhal.
RIC
Esta recensão foi publicada pela primeira vez na revista "Cartaz" do semanário "Expresso".
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quinta-feira, 2 de novembro de 2006
I. Sobre literatura homófila (3)
Editado por RIC às 01:14
Separadores: Literaturas
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2 comentários:
Mas já leste? A crítica não é muito agradável com o livro. Se já leste, diz-me a tua opinião, que, como deves calcular, vale para mim muito mais do que qualquer recensão no expresso.
Olá André! Eu não transcriria uma recensão sem indicar o autor, não te parece?...
O texto aponta algumas «falhas» do romance, sobretudo em termos de construção, o que não invalida o interesse da história em si.
A regra de ouro para recensões é simples: se o livro não presta, nem sequer se perde tempo a escrever sobre ele.
Um abraço!
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