terça-feira, 12 de setembro de 2006

Quotidianos

Chega todos os dias por volta das sete. Seja Verão, seja Inverno. Chova torrencialmente ou sue‑se copiosamente sob a canícula inclemente. Alguém, que também ali vem com alguma regularidade, diz para um empregado que não está lá muito atento:
– Aposto que se pode acertar o relógio pela chegada daquele!
– Como?
– A… Nada, nada. Estava só a pensar em voz alta…
– Ah…
Atravessa o espaço amplo nem depressa nem devagar, num passo regular e determinado. Dirige‑se invariavelmente à caixa para o pré‑pagamento, e seja qual for o empregado ou a empregada de serviço já sabe o que vai ser: uma bica dupla e uma água com gás. Depois, ao balcão, enquanto é servido, pede sempre que lhe encham a chávena. Gosta de beber café em quantidade apreciável. Nunca ninguém o ouviu pedir uma italiana curta ou beber por uma chaveninha.
Pega no tabuleiro, ao qual acrescenta invariavelmente um cinzeiro descartável em folha de alumínio, e senta‑se a uma mesa. Há sempre uma mesa livre, e parece não lhe fazer diferença se a mesa fica mais à esquerda ou mais à direita da sala, mais à frente ou mais atrás. Só em dias especiais em que haja concertos àquela hora – e são cada vez menos – é que às vezes se vê obrigado a procurar mesa na outra sala, mais ampla e com um maior número de mesas.
Uma vez sentado, adoça o café e despeja a água no copo até à última gota. Tira do bolso o maço de cigarros e o isqueiro e põe‑nos sobre o tabuleiro. Nunca sobre a mesa. Sempre sobre o tabuleiro. Parece mesmo que o copo fica sempre à esquerda, a chávena ao centro e o cinzeiro à direita. Porém, embora por várias vezes tenha verificado esta mesma arrumação, não é ponto assente que ela seja sistemática. Poderá não ser uma mania, mas apenas a forma mais conveniente e a mais prática de dispor aqueles três itens.
Invariavelmente também, traz sempre consigo algum material de leitura, uma revista ou, de vez em quando, um livro. No instante em que começa a ler acende um cigarro. Interrompe várias vezes a leitura para beber um gole de água ou levar a chávena aos lábios. Desvia os olhos do papel para depositar a cinza no cinzeiro. E durante o tempo que ali permanece parece embrenhado na leitura, tão embrenhado que não se dará conta de quem entra ou sai, de quem se levanta ou se senta, de quem entra sozinho ou acompanhado, da fila que por vezes se forma junto à caixa do pré‑pagamento, dos que se encostam ao balcão até serem servidos, dos que pedem para ser atendidos no balcão dos gelados. Parece que a leitura o faz abstrair-se de tudo o que se passa ali à sua volta.
Nada, porém, menos certo.
A sua vinda ali decorre precisamente de uma necessidade arraigada de ver gente. Se for directamente para casa, perde a única oportunidade diária de ver gente viva que desconhece, que poderia conhecer, se… Mas não é capaz. Nunca foi. A leitura começa assim por ser uma estratégia para não ficar ali sentado a ver quem entra e quem sai, apenas a olhar; é por isso uma protecção, para logo se transformar num objectivo em si, absorvente, que na maior parte das vezes acaba por desviá-lo por completo do que inicialmente o traz ali. Terminada a leitura do artigo da revista ou do capítulo do livro, quase sempre é forçado a constatar que já são horas de seguir para casa e que acabou por não ver praticamente ninguém. Apenas um ou outro, no instante em que levantou os olhos para beber água ou café ou para apagar o cigarro no cinzeiro.
Mas isto também não acontece exactamente assim. Pelo menos, não em tempos mais recentes, desde que começou a tentar controlar a deriva provocada pela leitura quase hipnótica, invariavelmente conducente àquele ficar absorto a tudo o que o rodeia.
Enquanto os olhos parecem ir percorrendo as muitas linhas a ler, a sua atenção divide-se entre o seguir o fio da leitura, para que não tenha de voltar atrás ou mesmo de reler todo o artigo ou todo o capítulo na imperturbável quietude da solidão doméstica, e o saltitar de vez em quando entre aqueles que dão vida àquele espaço. Uns são mais jovens, outros menos; uns são mais belos, outros menos; uns suscitam devaneios, outros deixam‑no indiferente; com uns gostaria de meter conversa, de os conhecer melhor, demoradamente; com outros sabe que qualquer conversa não levaria a nada, nem mesmo à mais anódina aproximação entre dois seres humanos, para não falar de quaisquer outras intenções que surgissem espontâneas na sua mente.
Somos assim nós, humanos. Estamos sempre a olhar‑nos de viés, de soslaio, como quem «não quer a coisa» – não é assim que se diz? – Fingimos com a aparente inocência de que não estamos a ver nada, mas olhamos. Estamos sempre a olhar. E estamos a ver. Nada parece escapar‑nos. Nos nossos cérebros circulam milhões de milhões de impulsos que nos levam, por vezes, a pousar o olhar mais demoradamente sobre um que, por via dos olhos, entrou na nossa mente como um raio de luz e causou uma carga de impulsos tal que não somos já capazes de continuar a fingir. Dá‑se um curto‑circuito. Cruzam‑se então os olhares. Momento crucial, perturbador, de desafio extremo. Como aguentar toda aquela tensão naqueles milionésimos de segundo em que decorre o avaliar do outro, se a reacção parecer de súbito bem encaminhada, ou o medir do outro, se a reacção se parecer mais com um confronto a distância, um combate infinitesimal mas decisivo, aberto quase sempre por um esgar de desprezo que deixa tudo dito. Qualquer insistência redundaria em guerra aberta. Mais ninguém se aperceberia dela, naturalmente. Mas seria uma batalha sem quartel. Os olhares descruzam‑se então e regressa‑se placidamente ao fingimento. Desvanece‑se a tensão. Está ultrapassada a crise.
O avaliar do outro segue outras regras bem diferentes. Transforma‑se de súbito numa intermitência de luz em crescendo. Cruzam-se sucessivos olhares pontuais ainda ao abrigo de um fingimento já atenuado. Toda a expressão facial é então mobilizada, e as comissuras dos lábios passam a protagonistas. Basta um ligeiro jeito ou trejeito dos lábios para que tudo se encaminhe. E os olhos sempre em movimento, agora já com alguma certeza de que poderão pousar sobre os outros sem o perigo de verem a sombra escarninha do desprezo.
Num instante imprevisível e incontrolável, as comissuras contraem‑se, e os lábios esboçam um sorriso quase involuntário. A luz do olhar alastra a todo o rosto. O olhar cai sobressaltado, mas não por muito. Sente‑se traído por tamanha ousadia, mas já é tarde para se recusar a continuar o que começou. De súbito, são dois os sorrisos que se correspondem, que se desafiam. Uma alegria juvenil extravasa dos olhos, das bocas, das faces, dos corpos que já não estão bem onde estão. Há que tentar a aproximação física sem ser demasiado ostensivo.
– Desculpe, mas não pude deixar de reparar na revista que estava a folhear. É o número mais recente, não é?
– É, sim… Acabei de comprá‑la.
– Ali em frente?
– Sim, é onde a compro todos os meses.
– Ah, vou passar por lá. Depois…
– Pode dar uma vista de olhos, se quiser. Esteja à vontade. Sente-se, já agora. O meu nome é…
O vento muda entretanto de quadrante. Hoje ele irá para casa mais tarde que o habitual. A seu lado caminhará outro ser, outro corpo, que ele irá conhecer ao longo desta noite, ao jantar, na conversa que se seguir, e que ocupará um lugar há muito vago na sua cama. Quem sabe, se o ocupará também na sua vida.


RIC

13 comentários:

Planeta a cores disse...

Gostei sem chegar ao fim. Tem material para um conto!

RIC disse...

Obrigado! É bem provável que sim...

eskimo friend disse...

e eu gostava que me fosse tão fácil iniciar conversa com um desconhecido.

RIC disse...

... Concordo, NB, concordo!... Há aqui dois aspectos diferentes. Um é consequência de algumas (poucas) liberdades que a ficção se pode permitir. O outro decorre da personalidade de cada um... Há sempre quem seja mais solto e mais perspicaz. Há quem tenha «gaydar» a funcionar a 200%...
Naquele mesmo sítio, quem me dera ter o à-vontade da personagem. Se calhar ela existe por isso mesmo...
Obrigado!

Anónimo disse...

Fiquei Agridoce...
Fiquei com vontade de ler muito mais! Assumo!
" ...A seu lado(...), que irá conhecer ao longo desta noite, ao jantar, na conversa que se seguir..."
Surge-me uma questão, sem resposta: Quem será este «eu»?...

[ Ric, confesso:
1º- Tenho uma grande empatia com a poesia de Nuno Júdice.
2º - Fico a aguardar que o rescrevas em Português. Talvez aí, já tenha as ditas palavras...
3º Claro que fiquei surpreendida! (Não tinha forma de saber tal)
4º «Burrices» dessas, quem não as teve?... (Aqui, fica muito por dizer)]

Boa noite :-)

RIC disse...

Boa noite, Carla!
Quanto a esse «eu», acho que é o protagonista de «Quotidianos», não é?... :-)
Quanto a rescrever as «burrices», não sei quando o farei. Vai ser um texto mais longo, porque há pormenores apetitosos que, no meu Inglês, decerto ficariam deprimentes...
Por outro lado, tenho andado a dispersar-me. Tenho um livro para acabar e pouco lhe tenho pegado. Tenho de disciplinar-me, é isso...
Ainda bem que gostaste da historieta de café!
Boa noite for you too!

Anónimo disse...

De novo, boa noite.

Apre!!!
Estas coisas da informática, por vezes, transcendem-me...
Será desta?! Veremos!

...

Deixa-me dizer que, não fiquei totalmente convencida com o tal «eu»...:-)

Creio que as «burrices», terão outro sabor em português. Pode ser impressão minha, obviamente...

Folgo em saber que escreves...um livre! Às vezes, sabe bem um pouco de indisciplina,né?... A seu tempo, voltarás a ele.

A história do café, 'colou-me' ao écran, acredita!

(Ric, desde já o meu agradecimeto pelo teu «aconchego». É muito agradável, ter uma resposta aos comentários deixados)

:-)

RIC disse...

... Pois é, Carla, a informática transcende-te a ti e transcende-me a mim, enfim... Depois há os servidores que não querem servir e que já me fizeram perder «ene» textos...
Vou pensar com mais carinho na hipótese de verter as burrices para Português mais celeremente...
Ah!!! Agora é que percebi! (Oh deuses cruéis, como permitis que eu seja por vezes tão lerdo?!) A história do café ou... o rapazinho sentado numa esplanada parisiense, hein? Pois, pois, a história, sim, já sei... Eu, RIC, também queria estar em Paris: era da maneira que acabava o livro em três tempos...
Quanto às respostas, acho que é o que devo fazer. Ninguém gostará de escrever para o boneco, excepto o outro idiota das burrices. Mas esse não conta. Se eu escrevo e gosto que comentem, também gosto de responder e que me respondam.
E agora, boa noite! Vou ver se ainda faço alguma coisa antes de me deitar! Fui!!! (Ah! E não tens de agradecer...)

RIC disse...

Olá, Hera! Muito obrigado pelas tuas amáveis palavras e pela «fidelidade» das visitas!
Um beijo para ti!

Klatuu o embuçado disse...

É a chamada novela cor-de-rosa! :)=

RIC disse...

Calculo que, na tua onda, qualquer final menos letal será forçosamente pink. Neste caso, é-o duplamente... Para novela não dá, porque lhe faltam personagens e acção é linear. Com alguns toques dá um conto.
Ainda bem que gostas de Camilo Pessanha. É muito bom sinal gostar-se de poesia simbolista, sobretudo da portuguesa. Parabéns!

Klatuu o embuçado disse...

Meu caro, RIC... presumir a partir dos próprios preconceitos... só pode ser uma actividade intelectual inútil.

Não entendo isto: «A Cultura alguma vez te tratou mal? Ou foste tu que lhe perdeste o afecto? Ou sentes que é «este país» que não te merece?
Impressiona-me que uma sensibilidade se possa perder no negrume.»... Mas, apesar do magistério confessional nada me dizer, também não me oponho a que aqui venhas expôr o teu universo anímico...

Quanto à questão política... não me parece que seja o teu forte nem que tenhas percebido o texto... lêste «ditadura» e ficaste - politicamente - histérico. Entendo.
Mas para entender um texto é sempre necessário tentar perceber os contextos em que se move o pensamento de um autor.

Quanto ao que aqui viste de teatral... também não entendi o que te incomodou... optei por ser aqui um «carrasco real»... há quem opte por nicks como: «pénis 20 cm», «fofinho passivo», «sou toda tua», «chupa-me», etc... Cada um opta pelas «personalidades virtuais» que melhor possam traduzir as suas intenções ou objectivos... Assim o fiz.

Quanto à «novela»... acho que deste demasiada importância à cor «rosa»... que, no caso das «novelas cor-de-rosa», indica o campo semântico de uma certa ideia tola e pueril do relacionamento erótico humano e, de modo nenhum, uma qualquer orientação sexual.

Se voltares ao meu blog faz um favor à tua capacidade de discernimento: Não leias só os dois últimos posts, lê muitos mais...
Lê, por exemplo, estes:

http://cronicasdapeste.blogspot.com/2006/06/sangue-na-rua.html

http://cronicasdapeste.blogspot.com/2006/06/os-tarrafais-do-corao_04.html

Com os melhores cumprimentos.

RIC disse...

Klatuu, a resposta que te é devida encontra-la no teu blog, onde eu li o teu comentário pela primeira vez. Cedo ou tarde haveria de o ler.