Corria o Ano da Graça de 1554. Havia dois anos que meneer Kremer, que a História viria a conhecer e consagrar como Gerardus Mercator, se encontrava em Duisburgo ao serviço de Guilherme, Duque de Jülich e Kleve. Aos quarenta e dois anos, a idade começava a pesar‑lhe como chumbo, e a facilidade com que atravessara Invernos rigorosos estava para sempre perdida. Ultrapassara há muito aquele limite, a partir do qual se tem a certeza de que já se viveu mais do que resta viver, e punha os olhos, não sem uma pontinha de inveja, no corpo jovem, robusto e musculoso do seu filho Rumoldo, sobre o qual o frio intenso parecia não ter qualquer efeito. A sua infância, ao contrário da do seu herdeiro, e felizmente para ele, fora particularmente penosa. Nascera filho de sapateiro, em Rupelmonde, próximo de Antuérpia. Mas cedo revelou especial inclinação para os estudos, o que o salvou da miséria certa, graças ao zelo do seu tio Gisbert. Aos vinte e cinco anos era leitor em geografia e astronomia na Universidade de Lovaina.
Estava uma noite invernosa das mais rigorosas, e meneer Kremer deu as boas noites ao filho, recomendando‑lhe toda a atenção à lareira do quarto, e recolheu‑se enregelado. Há uma semana que não parava de nevar, e as temperaturas diurnas caíam para valores cada vez mais temíveis. Toda a Duisburgo estava coberta de um espesso manto de neve que, nalgumas zonas mais afastadas da influência amena do Reno, que teimava em continuar a correr, se transformara em grandes placas de gelo resistentes a qualquer tentativa de as despedaçar. Os habitantes já não sabiam o que haviam de fazer para diminuir o sofrimento que, aos poucos, ia passando dos espíritos para os corpos. Nenhum ancião se lembrava de alguma vez ter passado por um Inverno tão implacável. Na noite anterior, porque não se haviam protegido eficazmente da temperatura impiedosa, alguns dos habitantes mais velhos e mais ilustres da cidade haviam morrido de frio. Foram encontrados congelados até aos ossos, nos seus leitos de morte.
Meneer Kremer recolhera‑se bastante apreensivo, não sem primeiro haver lançado um olhar cuidadoso ao fogo que ardia na lareira do quarto e certificar‑se de que, no canto costumado, se encontrava lenha bastante para a manter acesa até de manhã. Apercebeu‑se ainda de que, apesar do vento gélido que soprava lá fora, o quarto estava a uma temperatura que podia considerar agradável. Antes de se meter na cama, passou os olhos por um velho tratado de cartografia, que o ocupava há já algum tempo, desde que aceitara a encomenda do Cardeal Arcebispo de Mechelen e Bispo de Arras, Antoine Perrenot de Granvelle, conselheiro de Carlos V. Pouco inspirado para leituras, posou o pesado volume sobre a mesa de trabalho, enfiou‑se entre as mantas e soprou a chama da vela. Com a sua idade, em breve seria considerado um ancião. Dos que haviam morrido na noite anterior, poucos eram mais velhos do que ele. E entre os trinta e cinco e os quarenta anos, muitos dos que haviam levado uma vida afoita e desregrada eram já realmente velhos. Receoso, deu‑se conta do sono a chegar, mas sentindo‑se bem aquecido pelo fogo e pelas espessas mantas, rendeu‑se‑lhe.
À sua volta começava a sentir um reconfortante calor que, estranhamente, nada parecia ter a ver com a temperatura ambiente. Era um calor que reavivava os sentidos. Sentia‑se rejuvenescer. Seria decerto um calor interior, que viria da alma ou do coração. Julgando‑se alvo de uma qualquer partida que os sentidos entretanto lhe pregassem, redobrou a atenção e olhou à sua volta. Como tivesse medo de alguma alucinação, esfregou os olhos com força e começou a ver miríades de luzes, mesmo de olhos fechados. Quando julgou que os abrira, deu consigo a percorrer uma qualquer galeria do que lhe parecia ser uma casa senhorial, talvez um palácio de um nobre onde jamais estivera. A galeria era longa e estava bem iluminada por grandes tochas que se dispunham em grupos de três, cada um sobre sua mesa. Haveria mais de dez mesas ao longo daquela galeria. Como era habitual, apresentava as paredes recobertas de belos retratos ao estilo da época e de algumas tapeçarias. Achou por bem observar atentamente os retratos expostos. Talvez pudesse concluir alguma coisa sobre o local para onde, sem saber como, havia sido trazido.
E assim fez. O primeiro representava uma bela mulher ainda jovem, de corpo inteiro e ricamente vestida. Toda a luz que inundava a tela parecia desprender‑se da sua figura, pormenor que não lhe escapou, por tão invulgar. O segundo era o retrato de uma mulher também jovem, a três quartos, vendo‑se apenas o busto. Era um verdadeiro retrato. O pormenor que desde logo lhe chamou a atenção, pela estranha beleza, foi a brancura do rosto. Não se tratava da palidez de uma jovem adoentada, antes de um belo rosto alvo como o plenilúnio de Agosto. E continuou caminhando pela galeria. Mais adiante, outro retrato. Desta vez, o de um homem talvez com trinta anos, cuja principal característica era o tom da pele, de um moreno muito intenso. Dir‑se‑ia um levantino, talvez da Anatólia ou da Terra Santa. Ao fundo, viu uma ave exótica que lhe pareceu ser uma fénix. Começava a ficar intrigado com aquele inesperado desfile. Em seguida, dispostos lado a lado, surgiram três retratos masculinos. O primeiro era certamente o de um rei ou de um príncipe. O porte e o olhar altivos, as finas roupagens e as muitas jóias, tudo apontava nesse sentido. Ao fundo do quadro, apercebeu‑se do que lhe parecia ser um jardim. Mas era um estranho jardim quase sem flores, apenas com sebes que formavam entre si corredores, muitos e cruzados, como se de um labirinto se tratasse. O quadro ao lado retratava também uma figura principesca, porém, sem nada de invulgar que o distinguisse. O terceiro representava igualmente algum nobre, que decerto se haveria notabilizado no exercício das leis, a julgar pela indumentária e pelos muitos volumes que o rodeavam. Comparando as feições dos três homens, não lhe foi difícil alvitrar que deveriam ser parentes. Então tentou relacioná‑los com os outros retratos daquela galeria. À medida que caminhava, a certeza de que seriam membros da mesma família ia aumentando. Percebeu que estava a chegar ao final daquele corredor, mas não conseguia ainda vislumbrar o que se encontrava para lá da zona de penumbra, onde a galeria parecia terminar. E foi pensando que os retratos que geralmente estão expostos em casas senhoriais representam, quase sempre, membros da mesma família.
Chegara entretanto ao final da galeria, que desembocava num estranho salão de grandes dimensões, redondo, mal iluminado e coberto de uma enorme cúpula muito alta, que tornava de reduzidas dimensões tudo o que se encontrava ao nível do chão de pedra. Tentando habituar‑se à obscuridade, entrou e entreviu um objecto gigantesco no centro do salão. Avançou e apercebeu‑se de que era uma estátua toda em bronze, que representava um vigoroso guerreiro vestido e armado à moda antiga. Porém, ao querer prosseguir, estacou subitamente. Primeiro, porque a seus pés, como vindo do nada, estava um mastim que, apesar de parecer adormecido e de tamanho razoável, tinha um ar feroz. Ficou perturbado. Depois, porque lhe chegou o cheiro do mar, um cheiro salgado e intenso como há muito não sentia, desde que deixara a sua Antuérpia natal, na sua saudosa Flandres. Lembrou‑se então do forte vento do norte que todos os Invernos varria a sua muito amada Lovaina. E assim se deixou embalar pelas recordações até que, de repente, avistou uma mulher sentada num nobilíssimo cadeirão. Ao lado, encostada a uma coluna que parecia pertencer a um baldaquino que ele julgava apenas entrever, estava uma lança antiquíssima.
A mulher levantou‑se e fez‑lhe sinal para que se aproximasse. Não conseguia ainda distinguir o seu rosto, mas o corpo, envolto em finíssimos tecidos, era jovem, esbelto, vigoroso e parecia ágil. Quando se encontrava já próximo, pôde vislumbrar a face de uma mulher jovem de raríssima beleza. Fascinado com o que os olhos lhe ofereciam, não se conteve e perguntou‑lhe quem era. Impávida, a jovem mulher olhou‑o fixamente, distante. Então, a luminosidade no salão aumentou, e uma suave brisa tépida começou a soprar. Pela abertura da cúpula pôde ver um céu nocturno, límpido e estrelado, que lhe permitiu calcular a proveniência da brisa. Soprava de leste. Ao mesmo tempo mantinha‑se, e até se intensificava, o odor intenso a maresia, de uma incrível frescura. Observando mais atentamente, reparou que em torno do cadeirão, espalhadas pelo chão, havia lindíssimas flores, muitas e variadas. Mais à frente, cobrindo uma boa parte do chão de pedra, estendia‑se o que se assemelhava a uma grande pele de bovino, com um recorte que não lhe era estranho, conquanto a posição lhe parecesse invertida. Seria possível?! Se a pele tinha a forma recortada do continente, então aquela mulher só poderia ser… E nesse relance em que identificou os retratados, a bela mulher surgiu a seu lado e, com a cabeça, assentiu. Meneer Kremer ficou extasiado e incapaz de articular palavra. Sabia pouco de mitologia, é certo, mas com a rapidez de um relâmpago concluiu que aquela pele só poderia ser a de Zeus, que se transformara em touro para raptá‑la. A ela, Europa. O que, porém, não podia saber é que ele a deixara ali, com aquele recorte, quando decidiu partir de vez. Terá sido o sinal de que jamais voltaria para junto dela.
Lindíssima história, pensou. E apercebendo‑se de que ele compreendera já tudo, a bela mulher tomou‑lhe o braço e disse‑lhe num tom de voz de uma impressionante suavidade.
«É para mim claro que já haveis entendido por que estais aqui. Só vós reunis as qualidades necessárias à tarefa que vos aguarda e da qual ora vos incumbo. Gravai em vossa mente, como se no cobre o fizésseis, todos os contornos desta amantíssima pele que aqui vedes. Cada um deles é precioso, pois que está indissoluvelmente ligado a cada instante de minha vida e é nobre parte de meu corpo. Bastará que a contempleis uma só vez mais e tereis em vós o ponto de partida para obra da maior dignidade, cujo labor preencherá vossa vida até ao fim de vossos dias.»
Dito isto, a mulher afastou‑se, e meneer Kremer desviou o olhar da figura feminina para a pele, que se encontrava agora na posição correcta e que ele observou por um brevíssimo instante. Quando isto fez, a luminosidade diminuiu e deixou de ver a bela mulher. Olhou em volta, com a visão transtornada por uma claridade diferente. Já era madrugada, e os primeiros raios de sol em muitos dias irrompiam pelo quarto, que se mantivera a uma temperatura quase primaveril. Na lareira, o fogo crepitava ainda e, lá fora, deixara de nevar e o céu mostrava‑se límpido e azul. No ar do seu quarto, meneer Kremer não se enganou quando reconheceu, sem equívoco, o delicioso odor a uma saudosa maresia.
[Meneer/mijnheer (Neerlandês): senhor.]
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RIC
12 comentários:
Li com muito gosto e prazer a história! Adivinhava-lhe outro desfecho, dramático demais porventura e - provavelmente - menos convincente.
Não há dúvida: a Grécia fascina-te. ;)
Olá Catatau! Obrigado! É isso mesmo o que a leitura - e também a escrita - tem de mais apaixonante: o cruzamento infinito de imaginações! Ganha quem lê e também quem escreve!
Quanto à Grécia, podes crer! Há muitos anos! Pena tenho de o meu Grego Clássico ser uma anedota...
Adoraria ler muitos dos ilustres Helenos no original!...
Um abraço! :-)
(Percebi o que quiseste dizer quanto ao «comentário» que te perturbou no fim-de-semana. Sabes que mais? Vozes de burro não chegam aos céus! E aquilo é puro lixo... Adiante!)
Também gostei muito do texto. Prendeu-me do princípio ao fim.
Desconhecia este Mito... tenho de ler mais sobre ele!
Olá Tongzhi! Esse é um dos aspectos menos fáceis da escrita: conciliar o que se quer dizer com o modo como se diz, por forma a que o texto resulte «cativante», nas palavras de Stephen King.
É um mito muito belo, como a maioria dos mitos gregos...
Um abraço agradecido!
:-)
Fui lendo num crescendo, e como o Catatau esperava o pior...
Mas, só tenho a dizer um adjectivo: Excelente!
E a Europa, a velha Europa, que orgulho ser filho dessa Senhora...
Olá João! Curiosamente, fiquei a pensar nesse «pior» desde que li o comentário do Catatau e, talvez porque inventei a história, não consegui vislumbrar um hipótese, a não ser a morte de Mercator durante a noite. Mas isso, do meu ponto de vista, destruiria a história... Outra hipótese, de facto, não vejo...
É, também acho que devemos sentir esse orgulho nessa «Senhora»!
Muito obrigado pelo «excelente»!
:-)
Fiquei «colada» ao ecrã! Fascinante do príncipio ao fim. Obrigada!
Ric, aqui que ninguém nos lê, tenho para mim que neste momento sou mais «ranhosa» do que «ronhosa»:-)
Agora vou, «via» Wikipedia.
Beijinhos!
Não tens de quê, querida Carla! É um prazer poder fascinar alguém. Não duvides!
Bem, minha cara, só tu poderás saber de facto o que é que se te aplica, se o «o» se o «a»... Eu só posso dar palpites...
Boa viagem pela Wikipedia!
Obrigado!
Beijinhos! :-)
Hey Ric!?
I don't know what's is going on, but I don't here from you anymore.
Drop me a line.
Sorry, dear Joel, it wasn't that thoughtful of me... I'll be over at yours really soon! I hope you're feeling better now that you know what needs to be done with your hand. Wish you the best, dear friend!
:-)
Pretendido até ao fim, imagina outro final, a morte.
Desconhecia este mito. Contigo vamos aprendendo...
Olá Lampejo! Ainda que não seja esse o objectivo último do que aqui faço - o de «ensinar e pôr as passoas a aprender» -, fico contente sempre que alguém descobre mais alguma coisa que lhe agrada, por meu intermédio ou não.
Mas também não quero «subir a fasquia demais», sob pena de a carga se tornar demasiado pesada e desinteressante...
Como disse noutra resposta a um comentário, esse final seria possível, é claro, mas na minha opinião destruiria a história...
Abraço! :-)
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