Quando a vida passou da reprodução assexuada à sexuada, cedo se deu conta que havia que acrescentar algo que levasse as espécies a ocuparem-se, a dois, da função que até então fora individual, autónoma e espontânea. Evitou assim, na maior parte dos casos, que acto sexual coincidisse com acto canibal. Que se comam, sim, mas não se devorem! É o prazer reprodutor, criado à imagem e semelhança do prazer alimentar, repositor de energias, fonte de equilíbrio somático e de bem-estar. De início, era ainda e só reprodutor, estritamente biológico, mas muita coisa mudou ao longo dos milhões de anos para muitas espécies e, em especial, para a humana.
O acto individual assexuado espontâneo deu lugar a uma panóplia de comportamentos variáveis de espécie para espécie que, na humana, evoluiu para uma actividade de auto-satisfação, deixando de ter apenas a ver com a geração de descendência. Ou seja, a passagem do estritamente biológico à dimensão que melhor caracteriza e individualiza a humanidade: a psíquica. Daqui decorrem consequências e há conclusões que a humanidade, no seu devir histórico, raramente se tem mostrado habilitada ou interessada em retirar com seriedade e honestidade.
Sexo e procriação deixaram de coincidir. E foi o prazer, que de reprodutor passou a sexual, que cindiu a função: o que fora previsto para atrair os indivíduos tão-só para a perpetuação da espécie revelou-se uma actividade autónoma para reequilíbrio do indivíduo. O que a biologia ganhou em diversidade perdeu em exclusividade. Sendo a sexualidade humana iminentemente psíquica, é natural que na interacção dos dois géneros da espécie ocorram três tipos de relações – e não apenas um. Todas as guerras travadas contra as ditas sexualidades desviantes (de quê? Não são homens e mulheres seres da mesma espécie? Onde está então o desvio?) em nome sobretudo de ideologias dominantes ou sob a bandeira de credos religiosos – ah, a eterna presunção humana de adivinhar o pensamento divino… – o têm sido em nome da procriação e não do sexo, o que se revela um contra-senso visto ser uma espécie gregária. Assim, falar-se de sexo «contranatura» é uma abominável falácia decorrente do poder dominante – o tradicional patriarcado, macheco, pacóvio e apavorado com qualquer abalo à sua identidade, e todos os seus reflexos nas estruturas sociopolíticas… Em última instância, nada tem a ver com a natureza humana propriamente dita.
A designação «opção sexual» é, em si mesma, acintosamente discriminatória. Como se só quem não é heterossexual é que haveria de se ter dado ao capricho, ao devaneio quiçá perverso, à madureza de escolher – sabe-se lá quando e por que carga de água! – outra sexualidade que não a predominante. Tal como todo o heterossexual sempre se conheceu e reconhece como tal, regra geral, também o homossexual e o bissexual. Outras atitudes, cada vez mais generalizadas, decorrem, a meu ver, de modismos – logo, de tendências culturais – que mais não têm feito que lançar ainda mais confusão sobre um assunto já de si com contornos pouco definidos. E o que confunde a questão é a circunstância, a situação e a personalidade do indivíduo, as quais lhe permitem – ou não – a manifestação do que está na sua natureza. Obviamente, em função da presente sociedade, no caso do heterossexual tais variáveis são sempre adjuvantes; nos outros, são geralmente oponentes. E é daqui que têm decorrido todos os problemas e todos os equívocos.
Por um feliz acaso, tive a oportunidade de ver o excelente documentário Out in Nature: Homosexual Behaviour in The Animal Kingdom, de 2001. Debilmente publicitado e sem que jamais se tenha tido acesso ao subtítulo (o que se segue aos dois pontos só se tornou explícito no próprio momento da exibição), o filme impressionou-me profundamente. Entre os muitos sentimentos e emoções em tropel, destaco a raiva surda de quem se reconhece miseravelmente ludibriado por uma investigação científica não objectiva, que se prostituiu a ideologias e a preconceitos ancestrais e que na natureza só tem visto aquilo que tem querido ver. Se isto é ciência, então estamos mais próximos da medievalidade do que eu pensava. «Se entre os humanos não deve haver homossexualidade, então entre os animais não há comportamentos homossexuais». Eis a divisa de um pensamento que se pretende científico, aplicando filtros à realidade objectiva e antropomorfizando a seu bel-prazer o objecto de estudo… A ética é sem dúvida coisa dúctil. E afinal para quê? Para vir a saber-se, no decurso de várias investigações que se impuseram em contracorrente ao pensamento dominante, que as sexualidades animais são bem mais complexas do que alguma vez se suspeitara e que talvez venham a ser chamadas a lançar alguma luz sobre o fétido pântano de mentiras, tabus, preconceitos e discriminações em que a humanidade, apesar de avanços balbuciantes, se tem vindo a comprazer e a teimar, ainda hoje, em permanecer atolada. Até quando?
RIC
sábado, 2 de junho de 2007
Das sexualidades da espécie humana
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12 comentários:
Não sei precisar de momento qual o nome do documentário que assiste faz tempo na TV, no qual se "debateu" a homossexualidade no seio de várias espécies animais, entre as quais, golfinhos, elefantes, primatas, etc...
Até quando? Talvez quando o ser humano deixar de ser entre outras coisas mesquinho e egoísta...
Olá Lampejo!
Só posso concordar inteiramente contigo!
Depois de ter visto este que refiro no édito, já tive oportunidade de ver mais uns quantos que denunciavam a «vida negra» por que vários cientistas passaram em diferentes países, por terem investigado os ditos «comportamentos sexuais desviantes»...
É... mesquinhez e egoísmo...
Um abraço e as melhoras! :-)
O tema sexualidade ainda tem e terá muito mas muito que ser falado, às claras. Debatido com bom senso e sem discriminações misturadas.
Penso que as "ideias" estão a mudar. Cada vez menos ouvimos patétices, não digo com isto que não se ouçam muitas, digo que se começam a ouvir menos.
Qualquer ser humano tem o direito de ser feliz, ponto fundamental. Ninguém tem o direito de avaliar e julgar a orientação sexual dos outros.
As pessoas tem o direito de se manisfestar quando se sentem discriminadas, mas não de formas radicais.
As "perseguições" que existem sobre a homossexualidade tem de acabar, claro que muitos generalizam e acham que um homossexual é por norma o fulano que anda nas discotecas a fazer-se a todos os homens e a criar maus ambientes. Claro que existem homossexuais que se atiram descaradamente aos homens como muitos heterossexuais que andam sempre a atirar-se ao sexo oposto, em grande maioria os homens às mulheres.
Eu tenho amigos homossexuais, bissexuais e heterossexuais. São para mim todos GRANDES SERES HUMANOS. Eu sou heterossexual e todos nos respeitamos no que toca à nossa sexualidade.
Assim actuarei sempre.
Concluindo, o Ser Humano tem de ser feliz.
Utilizar as orientações sexuais de cada individuo como tema de chacota ou tentativa de humilhação é uma pura estupidez, não tem qualquer nexo.
VIVA A FELICIDADE E A HARMONIA ENTRE TODOS!
Grande abraço
Olá Bernardo!
Não poderia ter tido melhor resposta a este texto! Muito obrigado!
Concordo plenamente contigo! Tenho amigos e amigas de ambas as orientações sexuais (os heterossexuais serão em maior número), e é como dizes: são todos grandes seres humanos!
É a felicidade de cada um de nós que conta e não com quem cada um vai para a cama. E exageros há-os por todo o lado e em todas as esferas da vida...
Acredito - e quero acreditar, apesar de tudo... - que melhores dias virão! As gerações mais novas já dão mostras de ter as capacidades que lhes permitem lidar com estas questões da sexualidade de uma forma livre de preconceitos e tabus idiotas.
Assim seja!
Obrigado!
Para ti, um «ganda» domingo! :-)
Aliás, é curioso que um dos ´´argumentos`` mais usados pelos homofóbicos pra julgar e condenar os gays é que, de acordo com eles, todos os animais são 100% heterossexuais.
Bom, só se eles conhecem animais de outro planeta, né? Aqui na Terra não é bem assim.
Aliás, quanto mais se estuda o comportamento e o funcionamento do organismo dos mamíferos (todos os mamíferos, em geral), mais se chega à conclusão de que, apesar deles serm movidos por instintos, há também uma certa busca de prazer. Qualquer biólogo sério vai confirmar isso.
Olá Carioca!
Mesmo a tratar de um assunto sério podemos dar umas boas gargalhadas! Rsrsrs! Foi o que aconteceu agora, com os animais de outro planeta!
De facto, a total heterossexualidade do mundo animal e, em especial, dos mamíferos, é uma gritante falsidade científica que só recentemente foi denunciada. E por cientistas que, não sendo homossexuais, foram discriminados, ostracizados pela comunidade científica e viram os seus projectos cancelados!
Eis a miséria humana!
O que referes acerca da provável busca de prazer nos mamíferos poderá também ter que ver com o facto de serem os animais com um processo evolutivo mais complexo (que culmina com o psiquismo humano).
Abração! Um excelente domingo!
:-)
não se me oferece acrescentar nada mais ao que disseste! foi claro, sucinto e na mouche, caro ric! :) um bem-haja.
Olá Tiago!
Alvíssaras que ele está de volta! Bem-vindo de novo, meu caro!
Obrigado eu pelo elogio! É possível que este seja um texto mais estruturado por se tratar de um assunto sobre o qual não escrevo com frequência. Por isso, tive mais cuidado (e rescrevi-o algumas vezes...).
Volta sempre!
Um abraço amigo! :-)
Boa malha, Ric! :)
Olá João M.!
Obrigado, pá! (Rsrs!) Tem de ser assim, de vez em quando chegar-lhes vento fresco! Passei a maior parte da minha vida a ser cordato, simpático, diplomático e «educadinho». Minha beleza cansou, como se diz nos Brasis...
Abraço! :-)
this is undoubtedly a great post!
Hello Will!
Lol!!! It is indeed, is it not?! Lol!!! I believe it too! Well, I did write it myself... No Wikipedias, no looting, no internet sinful behaviours...
Unless you've got a powerful translator and said no word about it... Possible...
Enjoy Spring in your beautiful garden! :-)
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