Mesmo que decorram só em sonho, todas as viagens valem sempre tudo o que encerram e desvendam. Vezes há, menos frequentes que o desejável, em que é a senda dos sonhos a levar‑nos. Quanto mais o sonho se entrevê distante e intocável, e a senda mais se assemelha a uma miragem que surge repentina para logo se sumir, mais o perseguimos como se de todos fosse o mais fácil de alcançar. É tal o desejo de que as aspirações de juventude tenham sido genuínas que, com os anos, nem nos damos conta, apesar de tudo, de que mais não somos que os revisionistas da nossa própria história pessoal. Sempre. Malgré nous. O futuro é certo, o passado é que está sempre a mudar.
O viajante é aquele que conhece sempre outros mapas e outras cartas, outros roteiros e outros itinerários, cujas coordenadas só ele domina. Há uma Geografia Imaginosa que o orienta por espaços interiores de evasão, que se vão construindo e alargando à medida que as visitas de reconhecimento lhe vão cartografando o espírito e a mente. É um saber precioso que o viajante acumula ao longo de uma vida. Há depois uma Geografia Maravilhosa que o estimula a apreciar todas as belezas visíveis e invisíveis dos quatro cantos do mundo. É com ela que a alma do viajante vai aprendendo a dirigir o olhar para o que verdadeiramente mais importa e a valorizar o que as paisagens revelam do toque talvez divino que as moldou. É um saber quase místico do viajante solitário que se vai embrenhando nos pequenos segredos que estão por toda a parte e que ele vai aprendendo a interpelar e a desvendar. São etéreos caminhos de viagens filosóficas. Por fim, há a Geografia Rigorosa, a ciência dos espaços terrestres, que a escola e os livros ensinam antes de o viajante se aventurar de peito aberto pelos caminhos do mundo. É um saber teórico que se vai fazendo prático e ordena os passos de quem percorre o mundo em busca de si e do outro, do igual e do diferente para, crescendo sempre, assimilar todas as possíveis dimensões do planeta e das suas gentes. E no fim do caminho sem fim, as três Geografias são o único tesouro infinito que jamais riqueza alguma poderá igualar.
E «o dia livre e claro» surgiu, e de fontes ressequidas jorraram utopias e sonhos que várias gerações juntas fizeram seus, perseguiram e concretizaram como sabiam e podiam. Ou não souberam e não puderam. Não sei rememorar este tempo de outro modo. Que se tenha chamado Revolução e assim o tenha vivido é agora mais motivo de dorido esgar de resignação que de lamento por uma oportunidade rechaçada. «A revolução já acabou. Naquele país só há ódio», desabafou Jorge de Sena regressado ao exílio da Califórnia. Hoje, que o sol já vai bem alto sobre esse horizonte, sobejam migalhas do pão farto avidamente devorado, restam escorropichos do vinho generoso sofregamente engolido e tudo está amorfamente reconduzido a uma nova ordem de mitos avulsos e baços, iguais a coelhos a saltarem das cartolas de uma ubíqua tecnologia, de que muitos têm pressa de usufruir sem pensar, mas de que só alguns gozam em pleno. Acaso só aqueles que nunca souberam o que significa ter de ansiar pelo «dia livre e claro». Para quem a noite era, é e será sempre luz bastante.
Em vez dos lugares míticos há hoje espaços de desejo, de ambição e de ganância, para onde não se viaja guiado por nenhuma das três Geografias, aos quais basta apenas aceder por um clicar de teclas e onde Paris tem a mesma cotação de Tombuctu, Cancún ou Banguecoque, onde o quotidiano de um turista é o clone perfeito de milhentos outros. Como tudo o que reflui a um estado imposto de repouso e esquecimento apenas aparentes, também os autênticos astros de luz e de vida permanecem expectantes, na certeza de que o sol destes dias é o sol virtual deste Inverno planetário e que hão‑de resistir e renascer nos vislumbres dos novos caminhos para outros lugares míticos, que haveremos de percorrer logo que a coragem seja bastante para desligar este sol enganoso e doentio. Como em muitos actos da vida, há que accionar o botão certo no momento certo, mas para várias gerações esta espera é já a eternidade. Entretanto, paira no ar um aliciante aroma a futuro novo.
RIC
12 comentários:
Há ainda a geografia das emoções, quando - sem mapa e gps - partimos à descoberta de um especial...
O meu lugar mítico são dois: Barcelona e Jerusalém. Ao primeiro vou quando quero, ao segundo vou quando me deixam!
Meu caro Ric
não sei bem como comentar "tudo isto"...
Primeiro, adoro viajar, viajei muito e continuo a ter na minha mente inúmeras viagens.
Segundo, adoro geofrafia, que com a história, sempre foram os meus temas preferidos nos estudos (até fui para económicas, porque, ao tempo, as alíneas dessa opção eram precisamente essas).
Terceiro, consegui ser professor de Geografia, o que me deu um imenso prazer, pois transmitir ensinamentos com gosto, é meio caminho andado para eles serem compreendidos.
Finalmente, Paris é efectivamente uma "festa", para os olhos e para a alma!
Assim, acho que apenas vou ficar a sonhar com a tuas sábias palavras sobre as diferentes geografias, vou reactivar principalmente a imaginária, talvez a mais fácil delas, e vou acreditar que voltarei a Paris, de preferência com alguém de quem muito gosto.
Obrigado, amigo por este delicioso bocadinho de prosa.
Olá Catatau! Essa tenho-a dispersado um pouco pelas outras três. É parte intrínseca delas...
Paris é o meu lugar mítico mais «acessível», por assim dizer.
Mas há outra cidade que mexe muito mais comigo a um nível bem mais profundo, com muito de inexplicável à mistura e bem menos acessível - Berlim.
Sou um pobre europeu...
Abraço! :-)
Não tens de quê, caro João!
Levantaste entretanto «uma lebre» que eu estava longe de ver correr... Estive para seguir Economia apenas por causa da minha quase devoção à Geografia desde a infância... Entretanto, as línguas impuseram-se. Mas ainda hoje é uma das minhas perdições...
Ainda bem que as três Geografias poderão servir para alguma coisa...
Creio que voltarei ao assunto. Há muito por onde explorar...
Bom fim-de-semana! :-)
As geografias da vida são de mestre. Outra coisa não era de esperar. Tu tens um dom, ou talvez mais que um. Mas o dom de explicar, não por palavras muito fáceis, mas com ideias muito claras é o que neste momento me apetece referir. Concordo contigo, a Geografia das emoções está, ou talvez seja, o fio condutor das que tu apresentas.
Paris, no meu entender, é, neste texto, um contexto para passares a mensagem seguinte.
Eu sou muito chato, eu sei. Mas que queres? Sou assim e não vou mudar...
Digo isto porque me dá raiva que estes textos sejam apenas partilhados com meia dúzia, talvez um bocado mais, de pessoas.Assim, volto à carga com o publicares, escreveres crónicas numa revista, sei lá...
Partilhar é preciso, seria a palavra de ordem que me apetecia gritar depois de ler "Geografias da Vida..."!!!
Bem hajas!
"Viajar é olhar", dizia a Sophia. E olhar é sentir, poderia ter acrescentado. Gostei da viajem.
Abraço
Olá Tongzhi! Agradeço-te a atenção com que tens lido estes «episódios», já que detectaste uma característica de que eu próprio também me dou conta: vocabulário seleccionado ao serviço de ideias claras. Posso dizer que é, de algum modo, um objectivo.
Quanto à «mensagem seguinte», pena é que não tenhas seguido esse caminho... Qual é ela? Era o que mais me agradava discutir neste texto...
Mas deixaste-te levar pela exaltação da partilha alargada... Quanto a esse assunto, creio já ter dito o que por ora tenho a dizer. Roma e Pavia... Ainda que não pareça, este blogue só apresenta de mim o que eu quero apresentar. Talvez a ponta do icebergue. Não que eu seja dissimulado, mas estando a minha vida em fase de «reconstrução», tenho neste momento outras prioridades. A isso sou obrigado.
Claro está que é para mim uma honra que te apeteça gritar «partilhar é preciso!», mas se calhar também aqui se manifesta o meu egoísmo... Certas «coisas» gosto de saber com quem as partilho... Ou talvez até nem seja esta a razão. Não sei dizer...
Mas não creio que precises de sentir raiva... Afinal, isto é apenas um texto, meu caro...
Muito obrigado!
Bom fim-de-semana! :-)
Olá Maurice!
... E, no caso da viagem, olhar tem de ser ver. Só assim ela alcança a sua plenitude.
Já agora, «o dia livre e claro» é um verso de Sophia...
Muito obrigado!
Bom fim-de-semana!
Um abraço! :-)
Eu não diria melhor, bela descrição "geográfica"...
Já dizia António Gedeão in "Pedra filosofal" no lindo poema, O sonho comanda a vida.
Eu atrever-me-ia dizer, os sonhos dão-nos assas para voar, novos quereres, mostra-mos novos "mundos"...
Pena é, quando perdemos a capacidade de sonhar..
Já que foi mencionada aqui a questão dos professores de Geografia, isso me fez lembrar que todos os professores de Geografia que eu tive eram sempre de uma inteligência brilhante!
Não tô desmerencendo os professores de outras matérias, não é isso (aliás, nem posso, porque eu sou professor de outras matérias rsrs). Mas os de Geografia, pelo menos todos os que eu tive, eram incríveis!
Acho que é porque é uma matéria que obriga a pessoa a tá sempre atualizada, a sempre rever e repensar idéias... Talvez seja isso.
Bom, um abraço!
Olá Lampejo! Gosto da associação com «Pedra Filosofal»... Obrigado! É de facto o sonho que comanda a vida!
Eu diria mais: grave, muito grave mesmo, é «quando» se perde a capacidade de sonhar. Pode-se abrandar o sonho, mas perdê-lo de vez? Espero bem que não!
Bom fim-de-semana!
Um abraço! :-)
Olá Carioca! Concordo em cheio contigo! Também eu tive muito bons professores de Geografia, e sei que isso teve grande influência sobre mim.
Os bons merecem sempre louvores!
Um bom fim-de-semana para ti!
Um abraço! :-)
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